Do silêncio à luta contra o antissemitismo: a transformação de um judeu de esquerda radical

Jonas Pardo é ativista na esquerda radical francesa há vários anos, onde escondeu seu judaísmo por muito tempo. Após o ataque ao Hyper Cacher, ele decidiu, com alguns outros ativistas, não deixar persistirem o antissemitismo que às vezes se manifesta e a negação que frequentemente o cerca. Este foi o primeiro passo de um processo que o levaria a criar um curso de formação em combate ao antissemitismo, projetado especificamente para a esquerda. Neste artigo para a revista K., ele conta sua história, detalha sua oficina de formação e as diversas reações que ela provoca.

 

Jonas Pardo

 

Na tarde da sexta-feira, 9 de janeiro de 2015, recebi uma ligação da minha mãe. Assim que eu atendi meu celular, ela perguntou se eu havia assistido o jornal. Disse a ela que sim, e que tinha visto o massacre do Charlie Hebdo na quarta-feira passada. Ela me contou que havia planejado fazer suas compras de Shabat mais cedo, mas que de última hora decidiu ir ao correio antes de passar no Hypercasher de Porte de Vincennes. Suas palavras eram confusas e eu não entendia o que ela queria dizer. Ela me disse que a polícia estava por toda parte, que ela queria fazer suas compras, mas que a área estava interditada. A conexão entre as palavras e ideias me escapavam e eu podia sentir a frustração em sua voz: eu não entendo o que ela está me dizendo. Eu assisto às notícias ao vivo, como ela me pediu. Descubro que está acontecendo um sequestro no supermercado que ela faz compras toda sexta-feira à tarde. Tudo se esclarece e vem o choque. Meus pensamentos e palavras ficam confusos. Eu me dou conta de uma realidade óbvia: se não tivesse uma carta para entregar no correio, minha mãe poderia ter sido a vítima de um massacre antissemita.

 

Após a negação, a luta renovada contra o antissemitismo na esquerda

Tais situações surreais são difíceis de entender e explicar. Nos círculos de esquerda radical onde eu era ativo, tive dificuldade em encontrar palavras de conforto para meu medo e minha raiva. Meu cotidiano ali constantemente se confunde com a luta, sem a necessária trégua para estabilizar minhas emoções. O preparo para manifestações é seguido de conferências de imprensa, que por sua vez são precedidas por ações noturnas, escrita coletiva, comparecimento em tribunais, o apoio a camaradas que estão presos ou que foram atacados pela polícia em locais ocupados. Em outras palavras, meu caso do supermercado e da carta no correio não entraram na minha agenda de compromissos e reuniões semanais. Mas há outro motivo para esse silêncio. Como trata um brilhante artigo na revista Vacarme: o antissemitismo é um não-problema para as esquerdas.

Nos movimentos sociais e parte dos sindicatos e das esquerdas políticas o debate era qual sentido dar para a manifestação “Je suis Charlie” e sobre o que parecia ser uma necessidade: a recusa a silenciar o debate democrático em nome do imperativo da unidade nacional. Os comunicados de imprensa defendiam a recusa de qualquer confusão entre muçulmanos e terroristas jihadistas, assim como a prevenção contra a reação islamofóbica que estava por vir. Mas frequentemente essas análises passavam ao largo de uma simples condenação do ódio contra os judeus. Em alguns casos – os piores – a menção ao ataque dos infelizes clientes do Hypercasher servia simplesmente como uma referência à condição dos palestinos. Assim, o governo israelense era acusado de “se aproveitar do medo” para encorajar os judeus a emigrarem, de serem responsáveis por efeito rebote pelo antissemitismo na França, ou até mesmo de serem suspeitos de terem organizado tais matanças através dos seus serviços secretos: minimização, negação ou justificação do antissemitismo. Na “melhor” das hipóteses, a matança antissemita era vista como uma notícia que não deveria provocar qualquer reação em particular. Como naquela piada judaica, onde uma placa na entrada de uma loja diz “proibida a entrada de judeus e de ciclistas”, e um cliente perturbado pelo aviso entra e pergunta: “mas… por que os ciclistas?”

 

Fevereiro de 2021: manifestação em memória de Ilan Halimi em Paris, organizada pela Rede de Ação Contra o Antissemitismo e Todas as Formas de Racismo (RAAR), VNR Judaico, Memorial 98 e Judias e Judeus Revolucionários (JJR).

 

Após os ataques de janeiro, três autores publicaram, em resposta ao Parti des Indigènes de la République (Partido dos Nativos da República), “Pour une approche matérialiste de la question raciale” (Por uma abordagem materialista da questão racial) e muitos de nós, buscando um sopro de ar fresco, entramos em contato com eles. Um pequeno círculo de reflexão e autoformação foi então organizado. Nossa composição era diversa – membros das forças armadas, autônomos, hoteleiros, fazendeiros, professores, romancistas e acadêmicos – mas o que nos unia e tornava único aquele pequeno grupo, formado não apenas por judeus, era o fato de que pensávamos a luta contra o antissemitismo no interior das organizações do movimento social. Mesmo nos sindicatos, coletivos feministas, centros sociais autônomos e ZADs (N.T.: ocupações sociais de territórios contra grandes obras na França). Lá, tentávamos entender como os casos de antissemitismo haviam aumentado desde os anos 2000, num contexto de recrudescimento generalizado de casos de racismo, mas, também, por que as esquerdas radicais minimizavam, negavam ou até mesmo justificavam atos e ameaças antijudaicas. Era também um momento de se reunir com grupos e pessoas que tratavam dessa problemática, desde a Ligne de Crêtes até a associação Memorial 98. Todos esses pequenos grupos têm pouco impacto no nosso campo político, mas têm o mérito de abordar há muitos anos o conspiracionismo e negacionismo na esquerda, a competição entre antirracismos e a penetração de teorias “dieudônicas” (N.T.: Dieudonné é um comediante francês antissemita, que foi abraçado por setores da esquerda francesa, que se identificaram com sua lógica antissemita conspiracionista) nos movimentos sociais em protesto. Foi nessa época também que novas vozes judaicas emergiram, em particular a Judias e Judeus Revolucionários (Juives et Juifs Révolutionnaires [JJR]) e a Juif·ves VNR (N.T.: coletivo LGBT judaico), as quais compartilham do nosso sentimento de urgência em assumir a luta contra o antissemitismo. Essas reuniões levariam depois à constituição da Réseau d’Actions contre l’Antisémitisme et tous les Racismes (RAAR) (Rede de Ação contra o Antissemitismo e todos os Racismos).

 

Ensinando a esquerda a reconhecer e confrontar o antissemitismo

Nos movimentos sociais, entendo que o antissemitismo se baseia principalmente em dois equívocos. O primeiro está relacionado à cultura antissionista baseada numa posição de princípio antinacionalista e/ou de afirmação de identidade anticolonial ao invés de um conhecimento sólido sobre o conflito Israel-Palestina. Na verdade, poucos militantes na esquerda que se dizem “antissionistas” são realmente capazes de dar uma definição precisa da palavra “sionismo”. O segundo equívoco se baseia numa falta de interesse e profunda falta de conhecimento sobre a história do povo judeu; a identidade judaica é frequentemente percebida como uma quinquilharia religiosa desinteressante à luz do ateísmo hegemônico nesses espaços. No entanto, desde a Shoah, o antissemitismo não tem sido mais reivindicado abertamente. Ele geralmente se expressa de forma disfarçada, então, para identificá-lo, é necessário um tanto de conhecimento histórico, algo com o que os militantes nas esquerdas, por estarem convencidos de que o antissemitismo é apenas residual ou que é reivindicado apenas pela direita nacionalista, não se importam. Por essas pressuposições acríticas, clichês antissemitas florescem entre as esquerdas radicais. Esse fenômeno me interesse e me leva a preencher um vazio na esquerda, para desarmar reações defensivas e garantir que o antissemitismo é reconhecido e combatido por aqueles que afirmam ser parte do movimento antirracista.

É nesse contexto que eu montei um curso de treinamento sobre a luta contra o antissemitismo especificamente para a esquerda. Nessa fórmula completa, ao longo de três dias, ela busca trazer para os participantes a compreensão do processo histórico que levou à criação de diferentes formas de antissemitismo para nomeá-los precisamente e saber como argumentar contra e combatê-lo. As apresentações históricas se baseiam em imagens – iconografias, gravuras, pinturas ou caricaturas – que permitem compreender a evolução do ódio contra os judeus. Do antissemitismo econômico à teoria da conspiração, do antissemitismo racial à negação do Holocausto, comparações são feitas entre as imagens de ontem e de hoje.

 

Manifestação contra as medidas sanitárias em combate à pandemia de COVID-19 

 

Uma das primeiras imagens que apresento serve para ilustrar a natureza oculta do antissemitismo contemporâneo. Trata-se de uma foto tirada em uma manifestação contra o “pass sanitaire” (medidas sanitárias em combate à pandemia de COVID-19). Ela mostra uma pessoa usando uma máscara de pássaro e segurando um cartaz com a frase: “Quem nos escraviza com o pass sanitaire? Quem está nos envenenando e matando com as vacinas? Quem irá para o trem graças à revolta dos gentis? #stopgenocidegaulois (‘parem o genocídio gaulês’)”. Então, peço aos participantes que sugiram adjetivos para descrever aquela pessoa. “Maluco, estranho, confuso, louco…” são as respostas mais frequentes que surgem nesse momento. Eu explico, então, o conteúdo daquele cartaz: a referência ao complô judaico do general Delawarde, as acusações históricas dos cristãos do que os judeus envenenavam os poços, a ameaça genocida que se torna clara quando sabemos que a palavra “gentil (gentille)” significa “não-judeu” e sua justificação pela inversão acusatória da palavra de ordem “#stopgenocidegaulois”. Trata-se de uma demonstração de extrema violência contra os judeus que é difícil de identificar à primeira vista. No fim da oficina, os participantes são capazes de analisar e descrever situações parecidas.

 

Um estudo de caso

No capítulo sobre o início do antissemitismo racial na Inquisição Espanhola, os participantes frequentemente se espantavam com a semelhança entre as representações de judeus e judias como bruxos e bruxas. São principalmente as gravuras e ilustrações das fogueiras e dos chapéus pontudos, os pileus cornetum, que produzem esse espanto. A história da caça às bruxas é muito estudada nos círculos feministas, já que ela corresponde a um episódio significativo na história da institucionalização do patriarcado. Percebi que o Malleus Maleficarum – o martelo das bruxas – é geralmente conhecido, enquanto os Estatutos de Limpeza de Sangre – Estatutos da Pureza de Sangue – são muito menos conhecidos, embora o precedam na história da caça aos hereges da Inquisição. Tendo estudado esses estatutos na escola religiosa, nas minhas aulas de história judaica, eu não havia percebido que eles não faziam parte do currículo de educação nacional. Descobri que, para algumas pessoas, toda uma parte da cultura política era reforçada no curso, conforme eles percebiam a continuidade entre a caça aos judeus e a caça às bruxas. Essas reações me fizeram perceber que muitas das acusações contra judeus e bruxas eram parecidas: as práticas criptojudaicas ocultas das quais os marranos eram acusados e o sabá das bruxas; as acusações de comunhão com o demônio; a preparação de poções com sangue cristão durante a epidemia da peste negra no século XIV; os venenos e maldições atribuídas às bruxas; os atos bárbaros contra crianças cristãs, assim como o ato de fornicação com animais. Judeus e bruxas se aproximam através de representações idênticas: natureza dupla, conspiracionismo, dissimulação, hipocrisia, mentiras, desumanidade, relação com forças maléficas, etc.

 

Caricatura clássica do judeu capitalista 

O capítulo sobre a revolução industrial e a expansão do antissemitismo econômico é uma parte importante da oficina. Lemos citações antissemitas de teóricos do comunismo, anarquismo e socialismo: de Marx a Bakunin, de Proudhon a Louise Michel. Depois estudamos o boulangismo (N.T.: movimento autoritário chauvinista que tentou derrubar a terceira república francesa no final do século XIX) e o papel que as esquerdas tiveram nessa primeira síntese nacional-socialista na França e durante o caso Dreyfus. À essa altura, proponho analisar um conjunto de caricaturas antissemitas que preparei e compará-las com alguns dos cartazes, palavras de ordem, bonecos ou faixas vistas em protestos recentes. Como membros do campo político que se diz antirracista, nossa preocupação é obviamente a defesa dos judeus enquanto indivíduos, em sua integridade física e mental, e dos judeus enquanto uma minoria nacional, que deveriam poder acreditar e praticar sua religião como quiserem. Mas as questões levantadas vão além, conforme identificamos os pontos em comum do antissemitismo e do conspiracionismo e as crescentes armadilhas nas lutas sociais. Não apenas porque constituem uma crítica truncada da dominação econômica, mas também porque erguem pontes ideológicas com a pseudocrítica “antissistêmica” da extrema-direita. Truncada porque ela responsabiliza indivíduos – as “elites”, por exemplo – ao invés de um sistema social totalizante, o capitalismo, pela deterioração das nossas condições de vida e de trabalho. Enquanto a crítica social se torna binária, ao opor “os trabalhadores”, “o povo”, e “os banqueiros”, ou “os globalistas”, o antissemitismo floresce. Vimos isso no movimento dos coletes amarelos, com sua obsessão pela denúncia dos Rothschild em várias das suas manifestações. Além do ódio antijudaico que essa denúncia insinua, várias das palavras de ordem da esquerda são postas em questão. Os problemas da personalização da dominação econômica e da crítica unilateral do capitalismo financeiro recebem pouca atenção da esquerda. Já durante o movimento contra a lei El Khomry, foi o silêncio dos sindicatos durante a visita de Dieudonné aos piquetes e a saudação da quenelle (N.T.: gesto com o braço esquerdo em frente ao peito e a mão tocando o braço direito, uma espécie de versão “apito de cachorro” da saudação nazista). Uma indiferença, ou mesmo uma certa benevolência, em relação ao que é percebido como um símbolo de mobilização antissistema já havia se manifestado. Inicialmente, foi entendido como um gesto “anticolonial”, visto que se dirigia “aos sionistas”, mas representava uma saudação nazista invertida, concentrando em si negacionismo, antissemitismo e homofobia.

 

Judeus e sionismo: o que é isso?

A oficina começa com alguns elementos para definir a palavra “judeu”. Após explicar a complexidade do que esse nome representa na história e algumas teses contraditórias, eu proponho uma definição de “povo judeu”, esvaziando o sentido racial da noção de “povo”, ou seja, um grupo de pessoas ligadas pelo sangue, que teriam uma mesma origem genética. Uso essa noção no sentido de que os indivíduos que compõem o povo judeu se percebem e se subjetivam como pertencendo a um grupo que compartilha textos sagrados, uma língua e destinos históricos cruzados. Uma história comum frequentemente composta por exílio e perseguição.

Vários participantes, em diferentes oficinas, questionaram a noção de “povo judeu”, referindo-se ao historiador Shlomo Sand e seu livro A Invenção do Povo Judeu. Nesse livro, o autor pretende confrontar as narrativas que traçam uma continuidade de linhagem entre os hebreus da história bíblica, os judeus da antiguidade, de quem há traços arqueológicos disponíveis, e os judeus contemporâneos. A tese de Sand tem como objetivo enfatizar a reparação da história na narrativa nacionalista israelense e mostrar como é impossível afirmar que os judeus são descendentes diretos de Abraão. Esse livro é uma referência antissionista, já que ataca os elementos do discurso de certas correntes do nacionalismo israelense que fazem da presença dos hebreus no oriente médio durante a antiguidade como justificativa para a presença dos judeus em Israel, hoje. No entanto, se o argumento nacionalista é falacioso, seu contraponto também é. Onde o autor deveria concluir a partir de sua demonstração que nenhum povo existe, ele restringe – ideologicamente – sua crítica antinacionalista ao povo judeu e apenas a Israel; o fato de que todos os Estados-nação, da França à Argélia, dos Estados Unidos à Rússia, forjam mitos capazes de justificar o sentimento de pertencimento nacional não é mencionado. Em meu curso, tento apontar que o problema da apresentação enviesada de Sand, a sua tese sobre a inexistência de uma noção de povo, é que ela parece se aplicar somente ao povo judeu.

Quando eu conto a história do sionismo, Theodor Herzl e o primeiro congresso sionista em Basília, muitos participantes ficam chocados e até confusos. Um participante me confidenciou, à parte, que ela pensava que “a Palestina havia sido dada aos judeus pela Europa como um entreposto da colonização ocidental”. Quando eu levanto a questão do sionismo logo após o capítulo sobre os Protocolos dos Sábios de Sião, respondo brincando: “se há um caso de um projeto internacional de estabelecer um governo judaico no qual os judeus são realmente os responsáveis, é o da independência do Estado de Israel!” Essa narrativa confusa – e até mistificadora – da história do sionismo como um braço armado do colonialismo europeu, ainda propagada por círculos anti-imperialistas, tem uma longa história. Em novembro de 1975, a Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua resolução nº 3379, intitulada “Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial”, declarava: “o sionismo é uma forma de racismo e de discriminação racial”. Essa definição só foi revogada em 1991 (pela resolução 46/86). Eu cito a história dessas teorias do sionismo definido como um “projeto colonial do Ocidente”, forjadas na Rússia pós-Stalin, nos estudos de “Sionologia”, no contexto da Guerra Fria, e que depois se espalharam pelos movimentos anti-imperialistas, nos países alinhados com o bloco comunista.

 

Antissemitismo contemporâneo: como explicá-lo para esquerda?

O antissemitismo contemporâneo só é abordado nas oficinas que levam vários dias. Eu considero que é necessário saber a história da construção das diferentes formas de antissemitismo – do antijudaísmo cristão ao antissionismo soviético – antes de entrar nas diferentes teorias que qualificam suas formas atuais. Além de decifrar as estatísticas e diversos estudos sobre o antissemitismo contemporâneo, o corpo de leis sobre ofensas racistas e as disputar sobre a definição de antissemitismo, olhamos para trás, para os principais casos dos anos recentes, especialmente os assassinados de pessoas judias – e a falta de reação na esquerda. Eu também ofereço uma abordagem crítica das teorias sobre o antissemitismo contemporâneo. Por um lado, a teoria da direita sobre o “novo antissemitismo”, exemplificada numa coluna publicada no jornal Le Parisien em 2018, que pintava os jovens dos subúrbios e “islamoesquerdistas” como os novos propagadores do ódio antijudaico e pedia uma reescrita do Alcorão. Por outro lado, a teoria que chamo de “substituição e efeito ricochete”, espalhado entre os círculos da esquerda radical, teorizada na obra O Fim da Modernidade Judaica, de Enzo Traverso, que postula que o antissemitismo foi substituído pela islamofobia e que expressões de violência contra judeus é simplesmente uma reação da juventude suburbana ao que acontece no Oriente Médio.

 

Jeremy Corbyn e Jean-Luc Mélenchon 

Uma ideia comum na esquerda é a suposição de que a acusação de antissemitismo é uma ferramenta da direita para descredibilizar a oposição, os movimentos sociais e os oponentes políticos em geral. Esse é um clássico mecanismo de defesa que eu gosto de questionar. Quando essa questão é levantada, peço por um exemplo específico de um caso onde isso é mobilizado. Até agora, as respostas tem sido: Jeremy Corbyn, Jean-Luc Mélenchon, Taha Bouhafs e Gérard Filoche. Nós, então, mostramos os casos que preparamos, já que são casos que revelam a falta de compreensão do antissemitismo na esquerda. Também gosto de lembrar que, historicamente, o que tem sido verdade é o oposto, já que a esquerda é constantemente acusada de ser “judaizante”, de estar sob influência judaica, e não de ser antissemita. Após ter estudado as acusações em detalhes, voltando a “quem disse o quê”, e tendo apontado as fraquezas das explicações sobre o tratamento da mídia sobre esses casos, nos perguntamos sobre as condições do perdão a quem fez declarações problemáticas. A pergunta primeiro é: perdão a quem? Segundo: quem aceitaria perdoar? Sem dar respostas definitivas, podemos formular a hipóteses de que uma condição necessária (mas não necessariamente suficiente) é um processo em três passos: um pedido de desculpas sinceros, um afastamento temporário do debate público e apresentação de um processo para compreender e explicar o problema. Em casos de acusações de antissemitismo, o debate é comumente sobre as intenção e respeitabilidade do perpetrador. Essa é uma distração do problema real, a saber, a explicação da própria falha. Palavras ofensivas não devem ser automaticamente perdoadas. O caso Gérard Filoche (N.T.: político de esquerda francês que postou uma montagem antissemita em sua conta do Twitter) é bastante ilustrativa desse problema, principalmente porque ele recentemente apoiou a presença de Corbyn como parte da campanha dos candidatos do partido France Insoumise.

 

Imagem postada por Gérard Filoche.

 

Outra armadilha retórica é a denúncia de um “padrão duplo”, a ideia de que casos de antissemitismo seriam mais denunciados quando eles envolvem figuras não-brancas do que quando envolvem figuras brancas. Mostro com facilidade, comparando o negacionismo do jovem Yann Moix ao de Medhi Meklat, que essa fala leva diretamente a uma reivindicação por um “antissemitismo para todos”, ao invés de uma vontade de combater o antissemitismo de onde quer que ele parta. Na mesma linha, discutimos também a denúncia do suposto “filossemitismo de Estado”, a ideia de que o governo demonstraria de forma oportunista um amor pelos judeus para melhor descredibilizar muçulmanos e a luta contra a islamofobia. Essa ideia, que afirma estar em desacordo com a mecânica da competição entre lutas antirracistas, na verdade apenas a reforça, uma vez que defende pôr obstáculos no caminho da luta contra o antissemitismo. Também reforça a teoria da conspiração de que o poder está “sob influência judaica”, quando não leva à afirmação de que o antissemitismo é uma crítica legítima ao governo.

 

Do alívio à luta

A explosão de teorias da conspiração durante a pandemia da COVID-19 e a sua adoção por círculos da medicina alternativa, por um grupo de políticos ecologistas e por muitos intelectuais reconhecidos da esquerda radical – como a socióloga Monique Pinçon-Charlot no documentário Hold-Up – parecia marcar um ponto de virada na conscientização da importância do antissemitismo na esquerda. Durante o período de lockdowns, um coletivo antifascista em Tours pediu uma formação sobre a luta contra o antissemitismo ao coletivo Judias e Judeus Revolucionários (JJR). Foi nesse contexto que os primeiros passos desta formação foram lançados. Em seguida, fortaleci e aprimorei a formação conforme as solicitações recebidas. Ativistas de associações, políticos, militantes antirracistas e sindicatos, mas também jornalistas, artistas e acadêmicos, etc., já participaram desta formação: funcionários da Mediapart, participantes do seminário da editora Crises et Critiques, membros da cooperativa agrícola Longo Maï ou os organizadores da campanha “Antirracismo e Solidariedade” em Toulouse. Frequentemente perturbados com o conteúdo da formação e impressionados com a dimensão da lacuna a ser preenchida, os participantes têm dado até agora um feedback muito positivo. Uma intervenção com a EELV durante as jornadas de verão do partido ecologista abriu a possibilidade de formação para os candidatos do NUPES que assinaram a carta proposta pelo grupo de trabalho “combate ao antissemitismo”. Será que as esquerdas gostariam de sanar seu atraso na luta contra o antissemitismo?

Após o treinamento, muitas pessoas me perguntaram se eu estava pensando em criar outros cursos de treinamento sobre dois temas que mencionei sem entrar em detalhes: o conflito israelense-palestino e a história da resistência ao antissemitismo. Acima de tudo, quando ministro uma oficina, frequentemente vejo os participantes judeus ficarem agitados e suspirarem de alívio, como se um tumor parecesse estar estourando na superfície dos círculos que frequentam. Eu entendo esse sentimento. Eu mesmo já escondi minha identidade judaica dos meus camaradas por muitos anos; até o ataque ao Hypercasher, que me levou a abandonar a estratégia do armário. O sentimento de libertação vem disso: finalmente pôr em palavras o que antes eram um tabu.


Jonas Pardo

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