Após o triste período do bolsonarismo, os judeus brasileiros, em sua maioria progressistas, aguardavam com expectativa um novo mandato sob Lula. Mas a aproximação do novo presidente com o antissionismo parece tê-los decepcionado. Renan Antônio da Silva e Eric Heinze nos conduzem aqui desde a longa história da comunidade judaica no Brasil até o segredo aberto das antigas andanças do antissemitismo nas suas elites.

Em fevereiro de 2024, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva discursava em uma cúpula da União Africana e declarou: “O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em outro momento histórico”. Em seguida, corrigiu-se rapidamente: “Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”.[1]
Com essas palavras, o presidente de uma grande potência mundial apertou o botão vermelho para muitos judeus que, embora não necessariamente apoiem Netanyahu, há muito se sentem comprometidos com a existência de Israel. De acordo com a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, “[a]s comparações da política israelense contemporânea com a dos nazistas” podem, em alguns contextos, chegar ao nível de antissemitismo[2], embora não há consenso sobre em quais contextos[3]. Como em dezenas de outros países, o conflito entre Israel e o Hamas não desempenhou nenhum papel significativo na vida do brasileiro comum, mas encarna uma Kulturkampf [guerra cultural] que se estende muito além dos limites de Israel ou da Palestina. O Brasil, uma nação repleta de atitudes contraditórias em relação a Israel e aos judeus, reflete todas as ambiguidades que os judeus testemunham há muito tempo em todo o mundo. A maioria dos judeus brasileiros apoiou a candidatura presidencial de Lula, deixando muitos indignados com seu pronunciamento, mas comparações entre judeus e nazistas já circulavam muito antes do conflito que começou em outubro de 2023.
De Lula a Bolsonaro – e de volta
Em 2022, os brasileiros reconduziram Lula à presidência, cargo que ele havia ocupado de 2003 a 2010. Esse retorno gerou expectativas de que ele e seu Partido dos Trabalhadores restaurariam a reputação do país como um baluarte da política inclusiva, mas o conflito entre Israel e Gaza o prejudicou, assim como já prejudicou outros políticos ao redor do mundo.
Nascido em uma família modesta na zona rural do nordeste do país, Lula começou sua carreira como trabalhador braçal e depois se tornou um ativista sindical, despertando a atenção pública como líder de base na década de 1970 e cada vez mais visto como um líder político em ascensão. Após esses mandatos presidenciais, ele foi sucedido por sua protegida, Dilma Rousseff, que seguiu suas políticas de 2011 a 2016. No entanto, disputas políticas internas e uma economia em crise levaram a um hiato no Partido dos Trabalhadores, com o partido de extrema direita de Jair Bolsonaro assumindo o poder de 2019 a 2022, que elogiava o governo de extrema-direita de Netanyahu.
O ultrassionismo de Bolsonaro dificilmente condizia com inúmeros judeus brasileiros que se lembravam de uma história de política progressista e apoio à paz no Oriente Médio.
Durante a campanha de reeleição de Bolsonaro em 2022, muitos apoiadores agitaram bandeiras israelenses em comícios públicos[4] e no dia da eleição em outubro de 2022, a primeira-dama Michelle Bolsonaro foi fotografada votando com uma camiseta estampada com a bandeira israelense[5]. Bolsonaro prometeu transferir a embaixada do país de Tel Aviv para Jerusalém, seguindo o exemplo do presidente dos EUA, Donald Trump, que tomou essa medida em 2018, e bajulando a ambição de Netanyahu de manter Jerusalém como a capital indivisa de Israel[6].

Bolsonaro raramente falou da Palestina, exceto para afirmar que ela não era um país[7] e, portanto, não deveria ter uma embaixada em Brasília, a capital do país. Negar a nacionalidade palestina e a existência de um povo palestino tem sido uma das táticas de sionistas extremistas. De fato, o ultrassionismo de Bolsonaro dificilmente condizia com inúmeros judeus brasileiros que se lembravam de uma história de políticas progressistas e apoio à paz no Oriente Médio. Por exemplo, o rabino Henry Sobel, que se estabeleceu no Brasil em 1970 e se tornou um fervoroso defensor dos direitos humanos[8], e a rabina argentina Tati Schagas vive há muito tempo no Brasil, onde luta pelos direitos LGBTQ+ e se posiciona contra todas as formas de preconceito<footnote>“Conversas sobre a pauta LGBTQIA+ marcam o Mês do Orgulho na CIP”, Congregação Israelita Paulista, 1º de julho de 2021. https://cip.org.br/conversas-sobre-a-pauta-lgbtqia-marcam-o-mes-do-orgulho-na-cip/.</footnote>. Durante a campanha presidencial de Lula em 2022, a organização Judeus pela Democracia, sediada em São Paulo, lançou um manifesto que reuniu mais de mil assinaturas em apoio à candidatura de Lula, juntamente com seu companheiro de chapa à vice-presidência, Geraldo Alckmin, do Partido Socialista.
Dado o sólido apoio dos judeus brasileiros a Lula, o choque foi palpável quando ele o comparou a Hitler.
Os signatários se declararam “do lado da democracia e dos valores éticos judaicos” e esperavam por uma “política alinhada à justiça social e à garantia do Estado Democrático de Direitos à Vida”, ironicamente voltando contra ele um dos slogans antiaborto de Bolsonaro. O texto culpava Bolsonaro pela desnutrição que afeta 33 milhões de pessoas[9], pelo desmantelamento das políticas de combate à pobreza[10], pelos retrocessos no combate à mortalidade infantil e pela perda de quase 700 mil vidas durante uma pandemia de COVID-19 mal administrada. Acusou Bolsonaro de ter usado verbas públicas “para fins eleitorais e interesses privados” e condenou o aumento do desmatamento, a perseguição a povos indígenas, os ataques a religiões de matriz africana e o descaso com a educação pública[11]. Dado o sólido apoio dos judeus brasileiros a Lula, o choque foi palpável quando ele fez a comparação com Hitler.

Algumas das prioridades declaradas de Lula, como conter o desmatamento na Amazônia, fortalecer a integração sul-americana e finalizar um acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, tornaram-se impensáveis sob um governo Bolsonaro que ostentava seu isolacionismo, desprezo pelas normas internacionais e desdém pelos valores tradicionais do constitucionalismo liberal. Claramente, muitos especialistas previram uma mudança de 180 graus na política externa após o retorno de Lula ao poder. Em 2023, a Foreign Affairs publicou um artigo alardeando “A Restauração da Política Externa Brasileira”[12], confiante de que “após o tumulto dos anos Bolsonaro, o Brasil pode se reafirmar como uma força valiosa no cenário internacional”[13]. O Brasil tornou-se um parceiro comercial cada vez mais importante para vários países do Oriente Médio, incluindo Israel, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. A questão agora era se (e como) Lula poderia ou iria promover mudanças substanciais. É verdade que, desde que assumiu o cargo, ele restaurou o apoio anterior do país a uma solução de dois Estados para israelenses e palestinos – embora Bolsonaro nunca a tenha abandonado oficialmente.
Sionismo no Brasil
Aproximadamente 93.823 sírios e libaneses chegaram ao Brasil entre 1884 e 1933, na época frequentemente chamados de “turcos”, lembrando vagamente as histórias otomanas dessas culturas, enquanto mais de 50.000 judeus, asquenazes e sefarditas, também vieram ao Brasil. Estima-se que 16.000 tiveram seus vistos negados por motivos raciais, mas mesmo assim os judeus continuaram a chegar[14]. As comunidades judaica e árabe deixaram suas marcas, em parte por meio de suas contribuições econômicas, e desempenharam papéis de destaque na vida urbana e cultural brasileira, exibindo suas características étnico-culturais, em parte, por meio de associações cívicas que destacavam suas origens.
Começando com uma onda que chegou de 1913 a 1918, o movimento sionista brasileiro expandiu-se gradualmente, embora com divisões que ecoavam as da Europa.
As ideias sionistas eram familiares há muito tempo aos judeus asquenazes e sefarditas no norte e se espalharam ainda mais com a chegada de imigrantes do Leste Europeu ao sul e sudeste do país, entre as décadas de 1910 e 1930. Com uma onda que chegou de 1913 a 1918, o movimento sionista brasileiro expandiu-se gradualmente, embora com divisões que ecoavam as da Europa: alguns ativistas queriam se concentrar na transformação da situação dos judeus, enquanto outros queriam transformar toda a sociedade[15].
No que poderíamos descrever hoje como um marxismo “clássico” ou “ortodoxo”, a esquerda antissionista priorizou o assimilacionismo. Em sua visão, o antissemitismo nada mais era do que exploração capitalista, o que significava que a “Questão Judaica” seria resolvida sob a ditadura do proletariado. Em uma sociedade igualitária, todos compartilhariam o acesso aos meios de produção econômica, com os lucros coletivizados. Isso eliminaria as rivalidades intergrupais características dos modos de produção capitalistas e o antissemitismo desapareceria. Nessa visão, o único futuro dos judeus residia na assimilação social e cultural às sociedades anfitriãs, onde sua tarefa presunçosa era derrubar o capitalismo em uma luta travada contra sistemas de nações e classes. Enquanto isso, outros progressistas buscavam fundir o nacionalismo com o socialismo sem que o primeiro se dissolvesse totalmente no segundo. Consequentemente, uma sociedade socialista poderia manter os direitos de autonomia cultural dos judeus, defendendo a cultura iídiche juntamente com a identidade histórica e cultural judaica – uma visão que poderia seguir caminhos tanto sionistas quanto antissionistas. Para os sionistas convictos, qualquer triunfo futuro sobre o antissemitismo necessitava de um Estado nacional. Juntamente com a criação de Israel, a perspectiva do fim da diáspora era desejável, pelo menos em princípio. Em contraste, para os “iídiches”, a vitória ocorreria por meio do reconhecimento de maiores ou menores graus de direitos de autonomia cultural para as minorias nos países onde viviam[16]. De fato, os antissionistas defendiam a continuidade da diáspora, defendendo a integração dos judeus à sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, salvaguardando sua autonomia com base na cultura iídiche. No entanto, Bernardo Sorj observou que o foco na cultura iídiche entre os asquenazes negligenciava laços mais profundos que uniam os judeus ao redor do mundo, incluindo judeus que falavam ladino (ou “djudio”), árabe ou alguma outra língua local não relacionada ao iídiche do Leste Europeu. Na visão de Sorj, essa divergência entre “hebraístas” e “iídichistas” aprofundou as divisões entre judeus sionistas e judeus progressistas[17].

Na época da criação do Estado israelense e das reações árabes de 1947 a 1949, brasileiros de origem judaica, libanesa e síria se tornaram alvos de suspeita por parte de um governo frequentemente inclinado a vê-los como estrangeiros[18]. Os conflitos entre israelenses e árabes ressurgiram em 1956, 1967 e 1973, mas no Brasil a coexistência entre muçulmanos e judeus permaneceu, em geral, cordial. Muitos debates construtivos foram realizados no ensino superior, juntamente com a publicação de livros entre líderes das respectivas religiões e comunidades. Essa coexistência pacífica ilumina os papéis de muçulmanos e judeus na dinâmica social mais ampla do Brasil, às vezes comparada ao pluralismo cultural na Espanha medieval.
Política do Governo Brasileiro em Relação a Israel
Em 1947, quando a ONU tinha apenas dois anos de existência, a delegação brasileira na ONU era chefiada por João Carlos Muniz, que concluiu seu discurso inaugural na Assembleia Geral com um tom cético, refletindo as crescentes tensões da Guerra Fria: “Devemos admitir […] que as Nações Unidas falharam em atingir o principal objetivo para o qual foram criadas: garantir a segurança e a paz. […] Uma trágica insegurança pesa sobre o mundo e se traduz em diferentes formas de medo”[19]. O alerta de Muniz ecoou o pessimismo do governo quanto às possibilidades de a ONU atingir os objetivos estabelecidos em sua Carta. Desde então, inúmeros volumes surgiram sobre a criação e a subsequente condução do Estado israelense, e muitas análises também podem ser encontradas sobre a política externa brasileira. Em contraste, pouco foi escrito sobre as posições específicas do Brasil em relação a Israel, e ainda assim estas refletem nosso mundo mais amplamente fragmentado.
Para avançar, podemos dividir os cinquenta anos de relações israelense-brasileiras na ONU em duas fases principais. A primeira fase decorreu da partição da Palestina em 1947 até a crise do petróleo de 1973. Israel deveu sua criação em 1948 à ONU, que ajudou o novo Estado a ser reconhecido internacionalmente, a ter suas políticas interna e externa legitimadas, a se consolidar como Estado e a assumir seu papel como ator internacional. Essa organização internacional e multilateral permitiu que Israel se aproximasse de outros países além de seus vizinhos árabes hostis. Em 1947, quando foi votada a partilha da Palestina, a política externa brasileira alinhou-se à dos Estados Unidos. Esta tendência continuou até meados da década de 1970, pelo menos em relação a questões urgentes envolvendo “a adopção de medidas para defender a coligação ocidental contra o expansionismo soviético”[20], como em janeiro de 1954, quando o desvio de água do Rio Jordão por Israel desencadeou tensões regionais. O Brasil participou ativamente dos procedimentos da Assembleia Geral, bem como do Conselho de Segurança, onde, de 1946 a 1968, serviu cinco mandatos bianuais como membro não permanente (1946-1947, 1951-1952, 1954-1955, 1963-1964 e 1967-1968).
Em resposta à escassez global de petróleo, a retórica brasileira exalava cada vez mais realismo, pragmatismo e um nacionalismo mais ousado, como testemunhado em suas posições mais firmemente pró-árabes.
Essa primeira frase foi caracterizada por uma política de equidistância em relação aos governos do Oriente Médio. Embora geograficamente distante da região, com interesses comerciais modestos tanto em Israel quanto no mundo árabe, o Brasil buscava promover o comércio entre todos os lados. Dadas as suas proeminentes minorias judaica e árabe, a diplomacia estatal foi guiada por um equilíbrio de interesses. O Brasil reconheceu a condição de Estado israelense logo após a Declaração de Independência de Israel em 1948, enquanto também estabeleceu laços diplomáticos com vários países árabes, incluindo Egito, Líbano e Síria. Durante esses anos, o Brasil frequentemente apoiou resoluções nas Nações Unidas destinadas a promover a paz e a estabilidade no Oriente Médio – às vezes apoiando resoluções críticas a Israel, mas também defendendo negociações e diálogo. Mas a segunda fase, que vai de 1973 até o presente, exibiu mudanças claras. Em resposta à escassez global de petróleo, a retórica brasileira exalava cada vez mais realismo, pragmatismo e um nacionalismo mais ousado, como testemunhado em suas posições mais firmemente pró-árabes. Uma grande manifestação foi o voto da Assembleia Geral do Brasil a favor da notória resolução de 1975, “Sionismo é Racismo”[21].
O Passado Antissemita do Brasil
Outra peça do quebra-cabeça surge das manifestações de antissemitismo, particularmente desde a crise do petróleo da década de 1970 e ganhando força após 1995 com a abertura de vários arquivos estaduais. Entre eles, o Arquivo Histórico do Itamaraty, sediado no Rio de Janeiro, e um acervo da Secretaria de Estado da Ordem Política e Social, vinculado ao Arquivo Público do Estado de São Paulo. Diversas revelações alimentaram controvérsias sobre o antissemitismo nos governos de Getúlio Vargas (1930-1945) e do General Eurico Gaspar Dutra (1946-1950). Desde então, pesquisadores têm enfrentado a hostilidade de famílias que anseiam por biografias elogiosas sobre seus ancestrais, como Oswaldo Aranha, Ministro das Relações Exteriores no governo Vargas (1937-1944), e Jorge Latour, encarregado de negócios do Brasil em Varsóvia e Roma (1936 e 1938), entre outros[22]. (Como Elias Canetti certa vez brincou, Der Berühmte sammelt Chöre. Er will nur seinen Namen von ihnen hören: “O homem famoso coleciona coros. Tudo o que ele quer é ouvi-los dizer seu nome.”)[23]
Apesar de novas histórias revelarem o passado antissemita do país e o antissemitismo de figuras políticas entre 1933 e 1948, muitos brasileiros mantêm uma conspiração do silêncio.
Da mesma forma, em Les Tabous de l’histoire (Os Tabus da História), Marc Ferro explica como a quebra de tabus perturba a ordem das coisas[24]. Alguns no Brasil queriam manter o silêncio sobre passados que corriam o risco de manchar seus heróis nacionais. Tabus se transformam em mitos, o que, por sua vez, alimenta interesses facciosos[25]. Claramente, evidências de simpatias nazistas nas décadas de 1930 e 1940 seriam embaraçosas para qualquer nação ou figura pública, daí as suspeitas enfrentadas por acadêmicos que mostraram que grande parte da diplomacia brasileira endossou o antissemitismo ao estilo nazista, o que ressalta a importância de novas versões digitais desses arquivos estatais para torná-los ampla e facilmente disponíveis ao público, como está sendo feito agora pelo projeto Arqshoah conhecido como Arquivo Virtual sobre o Holocausto e o antissemitismo[26].

Certamente, alguns judeus brasileiros, apesar de terem sido vítimas da política imigratória brasileira, insistem que no Brasil nunca houve antissemitismo, lembrando que organizações judaicas brasileiras resgataram refugiados nas décadas de 1930 e 1940 e os auxiliaram em sua chegada e adaptação ao país. No entanto, o triste fato é que o governo brasileiro nunca ofereceu abrigo ou ofereceu qualquer ajuda humanitária a refugiados judeus. Ao contrário, os governos Vargas e Dutra mantiveram políticas antissemitas secretas entre 1937 e 1948 para negar vistos a refugiados judeus e sobreviventes de campos de concentração. No entanto, as mitologias políticas mantiveram imagens de Vargas como um grande estadista, o “Salvador da Pátria”, e do Brasil como um país acolhedor, receptivo a todas as etnias e religiões. De acordo com a versão oficial, o governo brasileiro, entre 1933 e 1948, investiu no salvamento de judeus perseguidos pelos nazistas, mas esses mitos carecem de evidências concretas[27]. Apesar de novas histórias revelarem o passado antissemita do país e o antissemitismo de figuras políticas entre 1933 e 1948, muitos brasileiros mantêm uma conspiração do silêncio.
Negacionismo e Política da Memória
Dadas as tensões em torno do conflito de Gaza, a comparação de Lula com Hitler pode ter parecido, a princípio, um lapso infeliz, mas ele não tomou nenhuma medida subsequente para retratar ou modificar essa declaração, o que, sem dúvida, reacendeu o antissemitismo de esquerda no Brasil[28]. A Confederação Israelita do Brasil (CONIB) criticou duramente a ofensa de Lula como “extrema”, uma “distorção perversa da realidade” e ofensiva às vítimas, sobreviventes e descendentes do Holocausto. Lula havia abandonado a “tradição de equilíbrio e busca pelo diálogo na política externa brasileira”. De acordo com uma denúncia pública emitida pela Federação Israelita do Estado de São Paulo (FISESP), Lula estava se mostrando “cada vez mais extremista, tendencioso e dissociado da realidade”. A FISESP defendeu os direitos de “legítima defesa” de Israel contra “um grupo terrorista que não mede esforços para assassinar israelenses e judeus”. A repreensão da FISESP concluiu: “Condenamos mais uma declaração infeliz do presidente e esperamos que [o Itamaraty], que tanto nos orgulhou no passado com suas posições imparciais e equilibradas, seja novamente digno de elogios”[29].

Em novembro de 2011, o primeiro Museu do Holocausto no Brasil foi inaugurado em Curitiba para lembrar a sociedade da importância do combate ao antissemitismo. A comunidade judaica local, que anteriormente abrigava refugiados e sobreviventes do Holocausto, acusou Lula de “alimentar o antissemitismo”. Segundo uma declaração do Museu: “Num momento em que o antissemitismo tem sido propagado e aplaudido por membros de alto escalão de seu partido político, esperávamos que o Presidente da República compreendesse a perversidade de declarações como esta e aliviasse essa forma de racismo em seu próprio país[30]”. Essa resposta ecoou a do presidente do Memorial do Holocausto Yad Vashem, em Jerusalém, Dani Dayan, que classificou a declaração de Lula como uma “combinação escandalosa de ódio e ignorância”, chamando-a de “clara expressão antissemita”. Segundo Dayan: “Comparar uma nação que luta contra uma organização terrorista assassina com as ações dos nazistas no Holocausto merece condenação total. É triste que o presidente do Brasil tenha caído a tal ponto e se envolvido em uma distorção extrema do Holocausto”[31].
Judeus no Brasil, como em outros lugares, tinham bons motivos para se perguntar se teriam algum futuro na política nacional, dada a escolha entre as provocações de Bolsonaro e a incompreensão de Lula. Todas as tentativas de emendar a declaração de Lula só colocaram mais lenha na fogueira. Sua esposa, Janja, uma figura conhecida por seus próprios méritos, retrucou que “o discurso se referia ao governo genocida e não ao povo judeu”, insistindo: “Sejamos honestos em nossas análises”[32]. Essa resposta dificilmente apaziguou os grupos judaicos brasileiros, embora eles não apoiassem de forma alguma os ataques contra civis inocentes de Gaza. O proeminente jurista e ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer, escrevendo no Estadão, levantou uma questão que ouvimos todos os dias em todo o mundo: “Hoje, muitas críticas às ações de Israel em Gaza vão além das acaloradas controvérsias sobre a aplicação das normas do direito humanitário ou da gravíssima situação humanitária em Gaza. Elas resvalam para a negação da existência [de Israel]. Nesse contexto, surge a pergunta: de que forma um antissionismo tão presente nas críticas a Israel é uma forma contemporânea de antissemitismo?”[33]
Ex-aluno de Hannah Arendt, Lafer lembrou que o sionismo havia “buscado a construção de um Estado como resposta à perseguição sofrida pelos judeus como minoria discriminada”, de acordo com o princípio da autodeterminação dos povos. Para Lafer, a negação do direito de Israel de existir, familiar há décadas, mas amplificada desde a guerra de 2023, demonstrava seletividade, visto que não havia outras manifestações de negação da existência de qualquer outro Estado como resultado de suas políticas: “essa seletividade negacionista torna o antissionismo uma manifestação de antissemitismo. Ele guarda uma analogia com o negacionismo revisionista da negação da verdade factual do Holocausto”. Como Lafer e outros explicaram, o antissemitismo moderno difere de formas anteriores, “razão pela qual podemos falar mais apropriadamente de antissemitismos no plural. Uma das formas atuais de antissemitismo é o antissionismo”[34].
“Em meu nome e em nome de todos os cidadãos israelenses”, declarou o Ministro das Relações Exteriores Israel Katz ao embaixador brasileiro durante uma visita ao Museu do Holocausto Yad Vashem, em Jerusalém, “diga ao Presidente Lula que ele é persona non grata em Israel até que se retrate de suas declarações”[35]. Lula respondeu chamando o embaixador de volta ao Brasil e convocando o chefe da representação de Israel em Brasília, Daniel Zonshine, para uma reunião no Itamaraty. Mas, para piorar a situação, Lula afirmou que não utilizou a palavra “Holocausto” ao comparar as mortes, indicando que esse termo era apenas parte da interpretação israelense: “Eu não disse a palavra holocausto, essa foi a interpretação do primeiro-ministro de Israel, não foi minha”[36].No entanto, segundo o presidente executivo da Federação Israelita do Estado de São Paulo (FISESP), Ricardo Berkiensztat, os relatos de antissemitismo no Brasil aumentaram 236% após as declarações de Lula[37].
Maduro alegremente espelhou as ameaças de longa data do Irã, do Hezbollah e de outros países de eliminar o Estado judeu.
Esses incidentes apontam para a característica peculiar da hostilidade esquerdista, que evita, em grande parte, o antijudaísmo declarado, optando, em vez disso, pelo impeachment do Estado israelense. Poucas semanas após o início do conflito entre Israel e o Hamas em 2023, o presidente venezuelano Nicolás Maduro, sucessor do ícone esquerdista Hugo Chávez, classificou o sionismo como uma “ideologia […] mais perigosa que o nazismo[38]”. Maduro pronunciou estas palavras depois que o ultradireitista Ministro do Patrimônio de Israel, Amichai Eliyahu, defendeu o lançamento de uma bomba nuclear em Gaza[39], uma ideia obviamente hedionda, imediatamente condenada pelos judeus em Israel e no mundo todo, e pela qual ele foi rapidamente suspenso. No entanto, Maduro, com alegria, espelhou as ameaças de longa data do Irã, do Hezbollah e de outros países de eliminar o Estado judeu, acrescentando que “os racistas e supremacistas do sionismo querem destruir o povo palestino e todo o povo árabe, o povo muçulmano. Eles semearam uma ideologia de ódio, de pilhagem […], eles perseguirão os povos árabes e todos os povos muçulmanos”[40].
É claro que o antissionismo e o antissemitismo não podem ser totalmente separados, e comentários como os de Lula e Maduro também ecoaram um antissemitismo mais estabelecido na região, como em 2015, quando a presidente argentina Cristina Fernández de Kirchner pediu que as crianças em idade escolar lessem sobre “[u]sura e os sugadores de sangue” em O Mercador de Veneza, de Shakespeare, um comentário presumivelmente calculado para desviar a atenção da crise da dívida do país, que implicava a má gestão econômica crônica de seu governo[41]. Poucos anos depois, Alejandro Biondini, do partido de extrema direita Frente Patriótica, lançou sua campanha presidencial de 2019 tuitando: “Eu me defino como um claro defensor do Estado Palestino”, acrescentando: “Eu disse à DAIA [organização política judaica da Argentina] que aqui é a Argentina […] não Israel”, supostamente “para aplausos e gritos da multidão”. Em 1988, Biondini liderou gritos de “Morte aos traidores, covardes e judeus” entre manifestantes de extrema direita em Buenos Aires, seguidos em 1991 por uma entrevista televisionada na qual ele se gabou: “Nós reivindicamos Adolf Hitler”[42].
Renan Antônio da Silva
Doutorado, University of Warwick, campus de Londres; Doutorado, UNESP, Brasil; Professor de Ciências da Educação, Universidade Federal de São Carlos; renan@ufscar.br
Eric Heinze
Mestrado, Paris; JD, Harvard; Doutorado, Leiden; Professor de Direito e Humanidades, Queen Mary University of London, e.heinze@qmul.ac.uk
Notes
| 1 | Ver, p. ex., James Gregory, “Israel condemns Brazil’s Lula likening Gaza war to Holocaust.” BBC, 19 de fevereiro de 2024, https://www.bbc.co.uk/news/world-latin-america-68332821. |
| 2 | International Holocaust Remembrance Alliance, “What is antisemitism?” (s.d.), https://holocaustremembrance.com/resources/working-definition-antisemitism. |
| 3 | Ver, p. ex., Neve Gordon, “On antisemitism and human rights.” 28 The International Journal of Human Rights (2024) pp. 578-597. |
| 4 | Gabriel Huland, “From Bolsonaro to Lula: Understanding Brazil’s Passive Neutrality on Palestine and Israel.” Journal of Palestine Studies (2024), pp. 1–12. https://doi.org/10.1080/0377919X.2024.2311043. |
| 5 | Lazar Berman, “Wife of Brazil’s Bolsonaro casts vote wearing Israeli flag T-shirt,” Times of Israel, 30 de outubro de 2022. |
| 6 | Ver, p. ex., Mark Landler, “Trump Recognizes Jerusalem as Israel’s Capital and Orders U.S. Embassy to Move.” New York Times, 6 de dezembro de 2017. https://www.nytimes.com/2017/12/06/world/middleeast/trump-jerusalem-israel-capital.html. |
| 7 | Mariana Haubert, “Bolsonaro promete retirar embaixada da Palestina do Brasil’, 7 de setembro de 2018. https://www.estadao.com.br/politica/bolsonaro-promete-retirar-embaixada-da-palestina-no-brasil/. |
| 8 | Jayme Brenner, “Morre um justo, o rabino Henry Sobel, herói dos direitos humanos.”. Instituto Humanitas Unisinos, 24 de novembro de 2019. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/594592-morre-um-justo-o-rabino-henry-sobel-heroi-dos-direitos-humanos; Matt Sandy, “Rabbi Henry Sobel, 75, Dies; Defied Brazil’s Military Rulers.” New York Times, 23 de novembro de 2019. https://www.nytimes.com/2019/11/25/world/americas/rabbi-henry-sobel-dead.html. |
| 9 | Ver art. 6 da Constituição Federal Brasileira, garantindo proteções sociais mínimas. Ver também Título VIII, cap. 2. |
| 10 | Nos termos do art. 3º da Constituição, os “objetivos fundamentais” da federação brasileira incluem o dever de “erradicar a pobreza”. |
| 11 | Marcelo Brandão, “Geraldo Alckmin confirmed in presidential ticket with Lula,” Agência Brasil, 1º de agosto de 2022, https://agenciabrasil.ebc.com.br/en/politica/noticia/2022-08/geraldo-alckmin-confirmed-presidential-ticket-lula. |
| 12 | Gabriel Toueg, “‘A perverse distortion’: Brazil’s Jews slam Lula’s comparison of Israel to Nazis.” The Times of Israel, 18 de fevereiro de 2024. https://www.timesofisrael.com/a-perverse-distortion-brazils-jews-slam-lulas-comparison-of-israel-to-nazis/. |
| 13 | Hussein Kalout e Feliciano Guimarães. “The Restoration of Brazilian Foreign Policy.” Foreign Affairs, 15 de março de 2013. https://www.foreignaffairs.com/south-america/restoration-brazilian-foreign-policy. |
| 14 | Veja a tabela sobre imigração por nacionalidade. Brasil (1884-1933) (REIS, 2008, p. 33). Valentina Candido, “Como é ser um refugiado do Holocausto no Brasil’, Nexo, 28 de dezembro de 2023. https://www.nexojornal.com.br/expresso /2023/01/26/como-e-ser-um-refugiado-do-holocausto-no-brasil/. |
| 15 | Ver, p. ex., Léon Poliakov, Do Anti-Sionismo ao Anti-Semitismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000, cap. 1. |
| 16 | Ver, p. ex., Bernardo Sorj, Judaísmo para o século XXI: o rabino e o sociólogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 232. |
| 17 | Ver nota 16. |
| 18 | Júlia Calvo e Pedro Henrique da Silva Carvalho, ‘sírios, libaneses e judeus – paradoxo entre o grupo e a nação: participação e restrição em Belo Horizonte nos anos 1930 e 1940”, Cadernos de História (2016), 17(26), pp. 198-220. |
| 19 | Luis Felipe de Seixas Corrêa, Brazil in the United Nations: 1946-2011, Fundação Alexandre de Gusmão (2013). |
| 20 | Ieda Gutfreind, A imigração judaica no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004, p. 45. |
| 21 | Ver, p. ex., Roney Cytrynowicz, “Além do Estado e da Ideologia: Imigração Judaica, Estado-Novo e Segunda Guerra Mundial,” Revista Brasileira de História 22 (44) (2022), p. 65. |
| 22 | Ver, p. ex., Maria Luiza Tucci Carneiro, “Rompendo o silêncio: a historiografia sobre o antissemitismo no Brasil.” Cadernos de História, 13:18 (2012), pp. 79-97. |
| 23 | Elias Canetti, Masse und macht: Wesentliche Zusammenhänge zum Verständnis unseres Zeitalters. Hamburgo: Claassen Verlag, 1960, p. 267. |
| 24 | Marc Ferro, Les Tabous de l’histoire. Paris: Nil, 2002. |
| 25 | Cf. Eric Heinze, “Theorising Law and Historical Memory: Denialism and the Pre-Conditions of Human Rights,” 4 Diritto Penale Contemporaneo (2019) pp. 175-191; Eric Heinze, “When the Establishment No Longer Calls the Shots in Writing History,” New Lines, 27 de maio de 2022. https://newlinesmag.com/essays/when-the-establishment-no-longer-calls-the-shots-in-writing-history/. |
| 26 | Arqshoah, Arquivo Virtual sobre Holocausto e Antissemitismo, http://usp.br/leer/projeto/arqshoah-arquivo-virtual-sobre-holocausto-e-antissemitismo/. |
| 27 | Lauren Derby. “The Dictator’s Seduction: Politics and the Popular Imagination in the Era of Trujillo.” Durham, NC: Duke (2009), p. 323. |
| 28 | Ver, p. ex., Stêvão Limana, “Federação Israelita registra aumento de 263% de denúncias de antissemitismo após fala de Lula.” CNN Brasil, 28 de fevereiro de 2024 https://www.cnnbrasil.com.br/politica/federacao-israelita-registra-aumento-de-263-de-denuncias-de-antissemitismo-em-escolas-apos-fala-de-lula/. |
| 29, 30 | Id. Ibid. |
| 31 | Ver Yad Vashem, “Yad Vashem Chairman Reacts to Statements made by Brazil’s President Luiz Inacio Lula da Silva.” 18 de fevereiro de 2024 https://www.yadvashem.org/press-release/18-february-2024-21-22.html. |
| 32 | Ver Toueg, nota 29. |
| 33 | Celso Lafer, “Antissionismo como antissemitismo.” Estadão, 18 de fevereiro de 2024, https://www.estadao.com.br/opiniao/celso-lafer/antissionismo-como-antissemitismo/ |
| 34 | Ver nota 29. |
| 35 | Lazar Berman, “Israel declares Brazil’s Lula persona non grata for comparing Gaza war to Holocaust.” Times of Israel, 19 de fevereiro de 2024. https://www.timesofisrael.com/israel-declares-brazils-lula-persona-non-grata-for-comparing-gaza-war-to-holocaust/ |
| 36 | “Brazil’s Lula says he did not compare Israel’s conduct to the Holocaust.” Jerusalem Post, 28 de fevereiro de 2024 https://www.jpost.com/diaspora/antisemitism/article-789276 |
| 37 | https://www.cnnbrasil.com.br/politica/federacao-israelita-registra-aumento-de-263-de-denuncias-de-antissemitismo-em-escolas-apos-fala-de-lula/ |
| 38 | “President Maduro: Zionism is More Dangerous Than Nazism,” Orinoco Tribune, 7 de novembro de 2023, https://orinocotribune.com/president-maduro-zionism-is-more-dangerous-than-nazism/ |
| 39 | Ver, p. ex., Nicolas Camut, “Israel minister suspended after calling nuking Gaza an option.” Politico, 5 de novembro de 2023. https://www.politico.eu/article/israel-minister-amichai-eliyahu-suspend-benjamin-netanyahu-nuclear-bomb-gaza-hamas-war/ |
| 40 | Ver nota 36. |
| 41 | Ver, p. ex., Jonathan S. Tobin, “Kirchner’s Jew Hatred Casts Cloud on Argentina.” Commentary, 8 de julho de 2015, https://www.commentary.org/jonathan-tobin/kirchner-jew-hatred/. |
| 42 | “Anti-Semitic argentine politician kicks off campaign.” Times of Israel, 28 de maio de 2019. https://www.timesofisrael.com/anti-semitic-argentine-politician-kicks-off-campaign-vows-to-expel-israel-envoy/?__cf_chl_tk=l2nwoiV5.ztsl0.TRFN.ycxdgU6jeZm2bCpg4kprcM0-1714724846-0.0.1.1-1791 |