O Monstro da Memória: Entrevista com Yishaï Sarid

Inédito em português, O Monstro da Memória (tradução livre), é o quarto livro de Yishaï Sarid, após dois romances policiais[1] e um romance distópico. Neste último, O Terceiro Templo (tradução livre), ele imaginava Tel-Aviv e Haifa destruídas, o projeto de reconstrução do Templo de Jerusalém e Israel tornando-se um reino teocrático. O Monstro da Memória é igualmente provocador e perturbador, questiona a relação dos israelenses com a memória da Shoah e com a Europa. Confira a entrevista que o autor concedeu à Revista K.

O Monstro da Memória, Imagem na capa para edição francesa do livro (c) Allison Trentelman

 

“Caro senhor, o senhor encontrará a seguir o relato do que ali aconteceu recentemente…”

O “senhor”, destinatário da carta que começa assim, é o diretor de Yad Vashem; quem a escreveu é um jovem historiador israelense, especialista na Shoah.[2] O “ali” designa para este último a Europa, obsessivamente pensada como o lugar do crime — ao mesmo tempo tão distante e tão próxima do Estado judeu, sua província originária e maléfica. Quanto ao “relato do que aconteceu recentemente”, ele tem como objetivo explicar o colapso progressivo do autor da carta — que compõe a totalidade de O Monstro da Memória. Pois a memória da Shoah, para o historiador — que primeiro se tornou guia em Yad Vashem, e depois foi enviado pela instituição aos locais de extermínio na Polônia para acompanhar grupos de estudantes do ensino médio em suas “viagens da memória” — é de fato um monstro que o devora. Ela não é apenas um resultado, uma soma de informações e detalhes que ele possui, mas uma potência deletéria, uma força de assombro que o corrói e se instala nele para possuí-lo. Ele se pergunta se tem “consciência das repercussões [de tal trabalho] sobre seu estado mental”, dos “perigos psíquicos” aos quais está exposto, dirigindo-se ao diretor de Yad Vashem, que ele imagina como “o representante oficial da memória” e a maior autoridade encarregada do culto. “Sou o receptáculo dessa história”, adverte-o, “e ela estará para sempre perdida se as fissuras que me tomam se alargarem a ponto de me quebrar.”

Essas fissuras o dominam, antes de tudo, porque essa história e a memória que o invade o separam dos outros e o isolam. Ele se sente oprimido por esses alunos que guia na Polônia, por esses representantes do governo israelense que instrumentalizam os locais, por esses empreendedores de uma startup de Tel-Aviv que lhe pedem para ajudá-los a conceber um videogame sobre Auschwitz… Sua tarefa é “fazer compreender a dimensão dessa enormidade chamada Shoah”. Mas quantos são realmente capazes disso? Ele relata que todos apreciam seus conhecimentos, mas notam nele um “toque de frieza”, uma falta de empatia em relação aos destinatários do saber que transmite. Reprovam-no por não transmitir esperança suficiente. “Está bem, entendemos, já é o bastante”, diz-lhe um homem de um grupo que ele acompanha a Birkenau. “Não precisamos ver mais horrores para compreender. É suficiente. Não há necessidade de acrescentar nada. E não se preocupe, o senhor será integralmente pago.” O que o corrói é o espetáculo memorial (o turismo, o uso político, o pathos exagerado, a proclamação estereotipada do eterno dever de memória…), todos os discursos que visam, em suma, digerir a enormidade, a não se deixar atingir pela dimensão do acontecimento. Ele não para de identificar aqueles que permanecem intactos. Até o desmoronamento final, no confronto com um cineasta alemão que o contrata como guia para preparar mais um filme sobre os campos — o que lhe inflige uma violência em demasia.

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Como surgiu a ideia de O Monstro da Memória? Tratava-se, antes de tudo, de fazer uma crítica à relação entre a política e a cultura israelense com a memória da Shoá?

Yishaï Sarid: Eu nasci com a Shoah, meu sobrenome e sua história o testemunham: “Sarid”. Originalmente, o sobrenome do meu avô e de seus ancestrais – originários de uma região que outrora ficava na Ucrânia e hoje está na Polônia – era “Schneider”. Em 1945, meu avô, que era professor, encontrou-se em campos de trânsito, onde dava aulas para crianças sobreviventes da Shoah antes que elas fizessem sua aliyá e partissem para a Palestina. Foi ali que ele anunciou a meu pai, então com cinco ou seis anos, que nosso sobrenome passaria a ser “Sarid”, o que significa “sobrevivente” ou “remanescente”. Toda a família havia sido exterminada na Europa durante a Shoah. Na Bíblia, “Sarid” significa “aquele que resta”. Voltando à sua pergunta, acredito que não há israelenses para os quais a Shoah não seja um elemento do cotidiano — eu diria até, para os quais ela não seja o elemento mais fundamental. E isso tanto no plano geral quanto no plano pessoal. A Shoah influencia a vida política e a vida de cada indivíduo, no dia a dia.

Em seu relato, essa influência aparece como mortífera: o narrador sofre um colapso psíquico ligado à sua própria condição de historiador da Shoah.

Durante anos, li tudo o que pude encontrar sobre a história da Shoah: livros de história, relatos de sobreviventes e testemunhos. Como escritor, senti que estava me tornando obsessivo, interessado nos menores detalhes. Eu queria saber absolutamente tudo do que havia acontecido e como. Quais eram os meios de execução? Quais eram as músicas tocadas pelas orquestras que acompanhavam as pessoas nos campos? Eu queria saber tudo. E então essa obsessão começou a me assustar. Afastei-me dessa história e deixei de me interessar pelo tema por um bom tempo. Mas, na verdade, além das aparências, essa obsessão nunca me deixou. Decidi fazer dessa própria obsessão o tema de um livro. Escrever sobre a Shoah é uma empreitada enorme, e desde o início eu sabia que não queria inventar uma narrativa sobre o acontecimento. Há seis milhões de relatos sobre a realidade do que aconteceu — não precisam de mais um vindo de mim. Eu queria escrever sobre a maneira como cada um de nós pode se confrontar com essa questão. Então fui à Polônia. Quando cheguei ao aeroporto de Varsóvia, aluguei um carro e passei duas semanas visitando cada um dos campos de extermínio do território polonês. São lugares horríveis. Quando voltei da viagem, minha esposa me disse que eu havia sido tocado, que já não era o mesmo. Foi então que compreendi qual deveria ser o enquadramento do meu livro: essa viagem quase obrigatória aos locais do extermínio, feita por todo jovem israelense ao fim dos estudos. E minha missão: escrevê-la a partir dos meus sentimentos sobre o que vivi nesses lugares.

Você usou a palavra “detalhe”. É uma palavra que aparece com frequência no relato. Seu personagem também é obcecado pelos detalhes. Sua experiência é, em suma, a versão hiperbólica, catastrófica e patológica daquela que você mesmo viveu?

O personagem principal sou eu e não sou eu ao mesmo tempo. Sempre é assim! O que a prosa ou o romance permitem — ao contrário de um artigo jornalístico ou científico — é percorrer seus pensamentos mais sórdidos, mais politicamente incorretos. Ao ler o texto, pode-se pensar, por exemplo, que é verdade que quase me tornei diplomata. E, no entanto, no romance, não sou eu.

Mas além dessas precisões anedóticas, vocês têm em comum a forma como o personagem se torna obsessivo, atravessado por uma pergunta lancinante que lhe perfurou o cérebro: como dar conta da dimensão e do alcance desse acontecimento? Ele tem a sensação de que são poucos os que realmente querem aprender o que aconteceu. Sente-se sozinho diante desses jovens estudantes israelenses que ele acompanha na Polônia, e repete várias vezes que não gosta deles.

Praticamente todos os colégios israelenses enviam seus alunos para fazer essa viagem à Europa, que praticamente se tornou uma peregrinação iniciática. É extremamente difícil para jovens dessa idade confrontar-se com esse horror. Fui testemunha disso: o maior medo dos professores que os acompanham é que esses alunos os envergonhem. Os professores têm medo de que os alunos saiam do hotel à noite para ir a boates e se embriagar. Têm medo de que envergonhem a história do povo judeu. Sei disso em primeira mão, pois em 1983 participei de uma das primeiras viagens desse tipo. Um rapaz de 18 anos tem outras coisas na cabeça além da história da Shoah — ele pensa nas garotas… Há uma espécie de incompreensão e de espanto que germinam no encontro entre as aspirações desses jovens e a Shoah.

Tenho um pouco de vergonha do que vou confessar agora: no primeiro campo de Auschwitz I, há aquele muro diante do qual se fuzilavam diretamente alguns dos judeus que chegavam. Em 1983, o grupo do qual eu fazia parte chegou lá e cantamos o Hatikvá, o hino nacional israelense. A esposa do nosso guia tinha uma voz muito aguda, um pouco ridícula. Cantamos o hino nacional e a voz dela subiu aos ares. Todos os alunos estavam caídos no chão, rindo. Uma situação como essa, para além do aspecto cômico, mostrava o quanto era difícil confrontar o que estávamos descobrindo — algo insuportável para nós.

Embora de outra maneira, isso também permanece insuportável para o narrador do seu relato…

O narrador, que é um guia, se vê diante de adolescentes de 17 ou 18 anos para os quais é difícil compreender acontecimentos tão complexos. Ele escreve que não consegue amá-los porque há uma distância grande demais entre eles. E, quando tenta encontrar uma forma de se conectar com esses jovens, começa primeiro a ouvir as vozes daqueles que foram assassinados ali e a ver seus rostos. Tenta estabelecer esse vínculo, esse laço humano — especialmente com seus alunos —, mas sempre acaba sendo tomado novamente pelo relato da morte, do qual, de fato, não consegue se libertar. Quando visita um dos campos de extermínio e uma estudante passa ao seu lado, sente uma necessidade irreprimível de tocar seus cabelos longos e brilhantes, para tocar em algo jovem e vivo. A moça se volta, indignada, e lhe diz: “Mas o que você está fazendo?”.

O narrador declara estar contaminado por um vírus da memória. Você diria que ele sofre de uma verdadeira doença da memória?

Dizer que é patológico me parece evidente, porque se trata aqui de um trauma que nunca foi tratado e nunca foi curado. Somos todos vítimas, atingidos por esse trauma. Penso que há rituais que não têm razão de ser — como, por exemplo, cantar o Hatikvá agitando a bandeira israelense ao sair dos campos. Também penso naquelas imagens de sobrevoos dos campos de extermínio por esquadrões da força aérea israelense. É uma forma de querer dar um happy end. Mas também não posso dizer “vamos deixar tudo isso de lado”. Como eu poderia dizer isso? O livro se chama O Monstro da Memória porque trata de dar conta de uma memória em movimento, e não de algo estático. A memória funciona por vias estranhas. Se você me perguntasse se é possível fazer tudo isso de outra maneira, eu responderia que não se pode realmente se curar ou sair desse impasse. A ferida permanece aberta — pelo menos em mim —, aberta no meu coração. É dessa ferida que vem a minha escrita. O narrador pensa constantemente na ofensa feita à memória dos assassinados, que são apresentados apenas no último momento de suas vidas, quando os nazistas lhes roubam a sua humanidade. Não se fala dessas pessoas quando estavam vivas, de suas casas, de seus ofícios, de seus amores e amizades. Nada disso. Fala-se apenas do momento em que vão ser aniquiladas. Meu personagem é alguém sensível e, além de sua sensibilidade, é alguém ferido. É possível para ele continuar assim, dia após dia, vivendo esse tipo de vida? Ele se sente investido de um dever que pesa enormemente sobre seus ombros. Redige um relatório dirigido ao presidente de Yad Vashem sobre sua experiência como especialista da Shoah enviado à Europa Oriental para acompanhar estudantes em suas “viagens da memória”. Ele é como um soldado que faz seu debriefing para o órgão estatal israelense responsável pela manutenção da memória. No início de sua experiência, segue passo a passo o programa prescrito pela instituição. É como um soldado enviado em missão, mas, nesse caso específico, é um soldado isolado, único, o único a cumpri-la. Quer fazer o bem, quer ser um emissário confiável — até o momento em que tudo se quebra dentro dele. Ele já não consegue mais estar à altura do que deve fazer.

Percebe-se, no entanto, que ele não concorda com a missão que lhe foi dada. Por diversas vezes, ele questiona o que você chama de “a demanda por esperança”, que é sua tarefa cumprir. Aliás, essa é a principal crítica que lhe fazem regularmente: ele não transmite esperança suficiente. Ele é o soldado de uma missão cujos termos não lhe convém de modo algum.

No começo, ele se sai bastante bem. É depois que as coisas começam a sair dos trilhos… Mas gostaria de responder retomando o caminho da minha própria experiência pessoal. Ao voltar daquela viagem que fiz em 1983, cheguei à seguinte conclusão: “precisamos ser fortes”. Depois, fiz o serviço militar e continuei servindo no exército por seis anos. Essa decisão foi, em grande parte, resultado da experiência vivida durante aquela viagem de quinze dias. Ela me deu uma lição útil e importante, como para todos os judeus. Mas, mais tarde, a gente amadurece um pouco, fica um pouco mais inteligente e se pergunta: é essa a única lição que tiramos da Shoah? É essa a única mensagem que vamos transmitir aos jovens? É essa a pergunta que persegue o personagem, tanto em sua vida pessoal quanto profissional. “Precisamos ser fortes.” É só isso que há para transmitir?

“Você já tomou um avião no meio da noite com esses adolescentes? Já viajou de ônibus com eles por sete ou oito horas? Já se esforçou para lhes explicar e voltar a explicar o que aconteceu aqui e ali — nas florestas, nos guetos, nos campos? Já tentou penetrar por trás de seus rostos, em seus pensamentos capturados pelos brilhos dos celulares? Já tentou tornar perceptível a morte, os números e os nomes? Já os viu segui-lo envoltos em bandeiras de Israel, cantar o Hatikva diante dos fornos crematórios, recitar o kaddish sobre o tapete de cinzas, acender velas em memória das crianças jogadas nas valas, realizar toda espécie de rituais inventados por eles e, claro, esforçar-se para derramar algumas lágrimas? Perguntei-me muitas vezes se você já havia experimentado tudo isso.”

[Trecho de O Monstro da Memória (tradução livre)]
Há essa “ferida” de que você falou, mas há também a indignação, que confere ao seu relato uma carga fortemente crítica, até satírica. Seu personagem sente repulsa pela instrumentalização política dessas viagens de memória aos locais da Shoah — como quando vê um político israelense que acompanha em Bełżec ser fotografado diante de um monumento aos mortos.

Quando escrevi O Monstro da Memória, não era minha intenção fazer um texto de crítica política. A crítica, nesse livro, faz parte integrante dos processos psicológicos do narrador. Ele denuncia os objetivos quase militaristas que se manifestam durante essas visitas, os diferentes fins que elas buscam alcançar. Há também outro aspecto, que hoje não está em pauta: o sentimento de vingança que ele nutre em relação aos alemães.

A questão da Alemanha assombra o relato e o seu personagem. Este repete com frequência, tanto aos alunos do ensino médio quanto aos adidos militares que acompanha na Polônia: “Por que vocês têm tanta dificuldade em odiar os alemães? É essa questão que me interessa.”

Existe uma história de amor entre Israel e a Alemanha, e entre israelenses e alemães. Tenho amigos israelenses que me telefonam e dizem: “Venha neste verão, com a família, vamos para a Floresta Negra.” Eu respondo: “Olhem, pessoal, isso não vai ser possível. Talvez no ano que vem…”

O livro é ambíguo, problemático não em relação ao ódio sentido pelos alemães nazistas da época, mas em relação àqueles que são nossos contemporâneos. O livro termina com um confronto violento com um alemão.

Participei de uma reunião de intelectuais e escritores israelenses e alemães em Jerusalém. O tema do encontro não tinha nada a ver com a Shoah. Mas, após alguns instantes, os alemães começaram a falar da história da Segunda Guerra Mundial e da Shoah. Começaram a contar as histórias que tinham ouvido da boca de seus avós ou de seus pais, suas reflexões e pensamentos sobre a Shoah. Discutimos isso com eles. Com o passar do tempo, eu me sentia cada vez mais desconfortável. O encontro durou dois dias e, ao final, houve um pequeno simpósio de encerramento. Eu lhes disse: “Não tenho nada contra vocês pessoalmente, vocês são pessoas encantadoras, mas, sinceramente, nós não estamos do mesmo lado.” Não se trata de uma história comum sobre a qual possamos debater entre nós. É isso que acontece com o meu narrador que, no final do romance, acompanha um cineasta alemão aos locais de extermínio e age como se ambos estivessem vivendo uma experiência comum… É daí que vem esse motivo sobre a Alemanha e os alemães no livro.

O livro tende para o relato do desmoronamento final do personagem. O que o faz desmoronar é a maneira insuportável como, segundo ele, aquele cineasta alemão que o acompanha o observa: como um judeu. Ele se sente observado por uma espécie de fera obcecada por uma memória que não lhe diz respeito — pelo menos, não da mesma forma que a ele.

Ainda hoje precisamos enfrentar o antissemitismo. Israel é talvez o lugar onde se está mais protegido. Os velhos estereótipos antissemitas, que remontam a muito tempo, voltam à superfície. Foram eles que motivaram a criação do sionismo. O objetivo era criar um judeu que não tivesse mais nada a ver, nem de perto nem de longe, com os estereótipos do judeu tais como veiculados pelo antissemitismo. À imagem do ser fraco, covarde, vil, nada esportivo, o ideal sionista opõe um judeu alto, forte, agricultor, com mãos firmes e calejadas. Lembro-me de que, quando eu era criança, íamos visitar membros da família que viviam em um kibutz (falo de um kibutz da era de ouro das fazendas coletivas). À beira da piscina, as crianças eram meninos bonitos e robustos: altos, fortes, saudáveis. E eu era um menino da cidade, não muito bem constituído, nem bronzeado, nem esportivo — além disso, era quatro-olhos. A visão que temos de nós mesmos através do olhar antissemita é algo que perdura até hoje. Nunca ser fraco. Isso se ouve constantemente da boca de personalidades políticas israelenses. Significa que não se deve ter muitos sentimentos de culpa, nem ser moralista demais, nem intelectual demais. Para mim, isso equivale a propor que não se seja “judeu demais”. E isso vem justamente das pessoas que se pretendem as “mais judias”, as mais religiosas…

Yishaï Sarid (c) Katarina Ivanisevic
Mas de que “história de amor entre Israel e a Alemanha” o senhor falava há pouco?

Ainda temos, de todo modo, uma relação problemática com a Europa. Os israelenses se identificam com a Europa. Não encontramos um lugar adequado em nosso pequeno bairro… Os israelenses viajam muito para a Europa e gostam muito da Alemanha — de sua cultura, de sua limpeza, das loiras. Alguns anos atrás, eu passeava por Tel Aviv e, não muito longe do meu apartamento, vi que estavam sendo organizadas quermesses para o Oktoberfest. Em um dos bares, vi israelenses fantasiadas de bávaras… Quem for hoje a Israel encontrará, no aeroporto Ben Gurion, um pequeno fast food com comida bávara. Temos nostalgia da Europa. Mais que isso! Quando os israelenses observam as migrações para a Europa, muitos deles ficam com raiva desses imigrantes vindos dos países árabes e da África, pois estariam deteriorando essa bela Europa que amam. Esquecem um pouco que nós somos, nós, os “negros da Europa”. Entenda bem: não estou dizendo que devemos partir para a guerra, nos vingar dos alemães — não é esse o meu espírito. Mas essa raiva, essa necessidade de vingança ou de revanche, não desapareceu. Ela se redirecionou e para quem? Para os árabes, por exemplo. Penso que, se chegarmos a um acordo de paz com os palestinos, demoraremos muito mais tempo para pacificar nossas relações com eles do que levamos para pacificar nossas relações com os alemães.

O senhor observa uma nostalgia europeia por parte dos israelenses de hoje. É o seu caso?

Não posso servir de exemplo. Eu, quando caminho por Berlim, sinto náusea. 99% dos israelenses vão a Berlim sem problema algum, para fazer compras, ir a bares e boates. Sou eu quem está errado, eu é que sou o problemático. Para mim, a ferida na Europa continua aberta.

Mas o senhor ainda se sente um pouco europeu?

Nunca fui europeu, mas não há dúvida de que sou de origem europeia. Meus pais vieram da Europa Oriental. Minha avó materna nasceu em Lvov, hoje Lviv, na Ucrânia. Ela fez sua aliá em 1935, aos 19 anos. Subiu sozinha para a Palestina. Tinha uma professora não judia no ensino médio, que tinha afeto por ela. Essa professora lhe disse: “Ouça, os judeus não têm futuro na Europa. Ouvi dizer que há um lugar chamado Palestina. Talvez lá haja algo a construir e que possa ser um bom lugar para os judeus. Vá.” E, quando ela embarcou em Trieste, viu o mar pela primeira vez na vida. Alguns anos atrás, fui a Trieste para um evento literário e vi o porto. Fiquei profundamente comovido. Ela chegou ao país, estudou em uma escola de enfermagem, conheceu meu avô, casaram-se. Seus pais e sua irmã foram assassinados em Lvov durante a Shoah. Era uma mulher excepcional, mas extraordinariamente triste. Após a queda da Cortina de Ferro, perguntaram-lhe se queria voltar a Lvov para ver a casa de seus pais. Ela disse: “De modo algum, só tenho más lembranças de lá.” Dizer que não tenho nenhuma ligação com a Europa seria errado. Tenho uma ligação histórica ou cultural com a Europa. Existe uma civilização judaica que durou um milênio na Europa — não ignoro isso. Eis a minha resposta.


Entrevista concedida a Stéphane Bou

Notes

1 O poeta de Gaza (2009) e Uma presa fácil (2015), em tradução livre, ambos inéditos em português.
2 A tese do personagem tem como título: “Estudo comparativo dos métodos de extermínio empregados nos campos de morte alemães durante a Segunda Guerra Mundial.”

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