Israel e suas ameaças existenciais

Os fronts que ameaçam a existência de Israel são múltiplos. No exterior, os inimigos que desafiam militarmente o país se acumulam. Mas não se deve negligenciar o que ameaça Israel internamente. Para Eva Illouz, Israel precisa de uma frente ampla social-democrata, necessária para renovar o contrato entre Estado e cidadãos. Apenas um tal movimento pode devolver aos israelenses a força que lhes foi retirada e salvá-los de um verdadeiro risco existencial.

 

Theodor Herzl inclinado sobre a sacada do hotel Três Reis, em Basileia, durante a sexta conferência sionista.

 

Os observadores externos não conseguem compreender a crise aguda pela qual Israel atravessa. Não conseguem compreendê-la porque ela não se assemelha a nada do que conhecem. Os países podem mudar de nome (a Rodésia pós-colonial tornou-se o Zimbábue) ou de regime político — como quando os monarcas czaristas foram substituídos por revolucionários leninistas em 1917, quando um golpe de Estado reacionário transformou o Chile em 1973, ou quando a URSS entrou em colapso em 1991. Se tais mudanças podem constituir choques, ameaçam raramente a própria existência desses Estados.

Em contrapartida, na situação atual, é a própria existência de Israel que está ameaçada. E isso em várias frentes.

A primeira é uma ameaça militar imediata que emana de pelo menos seis fontes: o Hezbollah, o Hamas, os palestinos da Cisjordânia, o Iêmen, o Irã e a Síria. O círculo dos inimigos de Israel não somente se ampliou. Esses inimigos também se tornaram muito melhor armados e organizados, e contam com o apoio do Irã, da Rússia e da China, que buscam desestabilizar o mundo ocidental, em geral, e Israel em particular. Israel é, sem dúvida, uma potência regional, que ainda goza do apoio dos Estados Unidos em declínio e exerce uma dominação colonial sobre os palestinos; isso, no entanto, não basta para contrabalançar o fato de que seus inimigos xiitas e sunitas se tornaram estrategistas muito melhores e estão, mais do que nunca, determinados a prejudicá-lo ou mesmo, se possível, eliminá-lo completamente. Nenhum país trataria levianamente as intenções genocidas de seus vizinhos.

A segunda ameaça existencial é uma ameaça interna não menos assustadora do que a que vem de fora, e que também se desdobra em várias frentes. Trata-se, em primeiro lugar, desse importante contingente de messianistas judeus ávidos de poder, que querem expulsar os palestinos de Israel e dos territórios, que consideram como traidores os descendentes dos pioneiros laicos que contribuíram para o estabelecimento do Israel moderno, e que aspiram a impor um regime supremacista judeu. Para atingir esses objetivos, pretendem destruir a democracia israelense. Já demonstraram no passado que sabiam usar a violência para alcançar seus objetivos políticos (Yigal Amir, o assassino de Yitzhak Rabin, um dos arquitetos dos Acordos de Oslo, pertence ao campo messianista).

O segundo front interno é constituído pela população, em constante crescimento, dos judeus ultraortodoxos, que desfrutam dos privilégios de uma casta superior: escolhem não trabalhar e recebem benefícios financiados pelo contribuinte; não servem no exército e são representados por partidos políticos que não contam com nenhuma mulher entre seus dirigentes, sem que a lei intervenha. Esse grupo não apenas goza de privilégios sem equivalente no mundo: seus membros vivem também na crença ilusória de que suas orações são a arma essencial que protege os laicos que os sustentam.

A maioria dos ultraortodoxos é antidemocrática: suas escolas não ensinam educação cívica e suas opiniões sobre muitas questões — como igualdade de gênero, separação entre Estado e religião, direitos das minorias — estão longe de ser democráticas. Eles se encontram assim em uma aliança política com os messianistas. Ambos os grupos são felizes beneficiários de recursos dos quais os israelenses laicos — por exemplo, as famílias deslocadas de suas casas no sul e no norte, e traumatizadas pelos massacres e bombardeios nos dois fronts — necessitam cruelmente neste momento crítico. Esses dois grupos estariam ainda mais satisfeitos se vivessem em um Estado teocrático, o que os coloca em contradição com o campo israelense pró-democrático, mas lhes garante um aliado precioso no governo atual.

O último front dessa ameaça política interna é constituído pelos bibistas. O bibismo é uma doutrina de direita centrada no culto de um só homem. Como já ocorreu na história (com Lênin ou Mussolini, por exemplo), as massas podem ser hipnotizadas por uma figura política malévola e negar seu caráter impiedoso, seu egoísmo e sua disposição última de precipitar a nação no abismo. A malícia de Benjamin Netanyahu está agora bem visível: ele desviou o aparelho de Estado em favor de seus interesses políticos pessoais ao lançar reformas judiciais catastróficas; ignorou os alertas de segurança para poder prosseguir com essas mesmas reformas, que dividiram profundamente o país, colocando assim Israel em perigo imediato; não teve a decência de assumir a responsabilidade pelos horríveis resultados de seus erros de cálculo em matéria de segurança e de sua pura e simples incompetência. Após os massacres de 7 de outubro, não foi capaz de oferecer nem consolo, nem sequer o calor humano mais elementar aos sobreviventes e às famílias das vítimas.

O que aconteceu em 7 de outubro e depois, eu chamaria de um colapso sistêmico. Tratou-se do colapso de todo o aparato social israelense.

Netanyahu continua a provocar e a dividir a população, além de atacar seus rivais em pleno meio de uma guerra que causa todos os dias a morte de soldados e em razão da qual mais de 100 mil israelenses não podem voltar para suas casas. Ele está disposto a sacrificar Israel no cenário internacional, expondo-o a processos em tribunais internacionais, ao menos em parte devido à sua recusa em afastar de seu governo os extremistas e racistas Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich. Netanyahu parece ter a psicologia de um chefe de seita, que não hesita em arrastar todos consigo em sua queda.

A terceira ameaça é a mais difícil de descrever. Os israelenses usam a palavra mehdal (fracasso) para descrever a falha de seus serviços de inteligência, a ausência total de defesa de suas comunidades situadas próximas a uma fronteira crítica e o tempo atrozmente longo que o exército levou para tomar consciência e reagir em 7 de outubro. Mas o termo mehdal também é usado para designar um erro específico, que pode ser objeto de investigação por uma comissão, visando atribuir responsabilidades individuais concretas. Um mehdal desse tipo não foi o que aconteceu naquele Shabbat. Não se tratou de uma falha ou de um erro que pudesse ser comparado ao que ocorreu durante a Guerra do Yom Kippur. O que aconteceu em 7 de outubro e depois, eu chamaria de um colapso sistêmico. Foi o colapso de todo o aparato social israelense.

Onde começa um colapso desse tipo? Talvez com a indiferença de Netanyahu diante dos alertas de segurança que recebeu. Ou com a arrogância dos comandantes militares homens, que ignoraram os avisos de um ataque iminente, feitos por jovens mulheres-soldado (por que os comandantes se preocupariam se o próprio chefe de Estado não se preocupava?).

Ele prossegue no fato de que os colonos da Cisjordânia receberam tratamento privilegiado, já que foram destinados batalhões do exército prioritariamente à sua defesa, que deveriam estar no sul, perto da fronteira que foi violada. Prossegue também na desorganização espetacular do exército, que não estava preparado para uma situação de emergência desse tipo. Os soldados que tentaram socorrer as comunidades do sul não foram guiados por um plano diretor ou por um comando central, mas tiveram de recorrer às redes sociais para encontrar o caminho até os locais de combate. E culmina na chocante ausência do Estado e em sua total incapacidade de fornecer ajuda ou orientação às famílias traumatizadas que foram desalojadas de suas casas no sul e cujos campos agrícolas continuam abandonados. Esse mehdal não foi um mehdal. Tratou-se, de fato, de um colapso de todo o sistema.

Os fracassos são tantos, sua extensão tão massiva e profunda, que se trata de um processo difuso, intangível e invisível a olho nu, que se revela e se expõe como estando em curso: o colapso contínuo e duradouro das normas, da ética profissional e dos valores constitucionais fundamentais no seio da sociedade israelense. Após décadas de um governo dirigido pelo Likud, muitas instituições públicas são chefiadas por personalidades das mais medíocres, pouco ou nada profissionais, que se sentem pouco ou nada obrigadas ao serviço do interesse público, movidas pela pura cobiça e sede de poder.

Israel não sobreviverá sem ser uma democracia. Para Israel, a democracia não é um luxo moral ou político. É uma questão de segurança.

O ethos do Likud se espalhou por muitos setores da sociedade com seu caráter, sua falta de profissionalismo e, sobretudo, sua indiferença em relação ao bem público. Todas essas características começaram no topo do Estado. Como todos os dirigentes populistas do mundo, o Sr. Netanyahu nomeou seus amigos para chefiar instituições-chave e colocou o Estado a serviço de seus interesses pessoais. Ele provavelmente não é pior nessas tendências do que Viktor Orbán, Donald Trump ou Jair Bolsonaro.

Há, contudo, uma diferença essencial: nem a Hungria, nem os Estados Unidos, nem o Brasil têm um nível de vulnerabilidade estratégica comparável ao de Israel. Nesses países, a presença de um dirigente populista negligente e egocêntrico não ameaça necessariamente a própria existência do Estado. Mas, em Israel, uma má liderança dessa magnitude pode significar, como vimos em 7 de outubro, a morte.

A natureza catastrófica de tal liderança continua a se manifestar na guerra que Israel trava contra o Hamas em Gaza. Trata-se de uma guerra na qual é difícil ver um objetivo estratégico se delinear.

Enquanto, pelo menos para observadores externos, essa guerra não parece ser guiada por uma reflexão aprofundada, ela surge como imprudente. A guerra enfraqueceu Israel no plano internacional de uma forma que sua população ainda não compreendeu totalmente.

A guerra já minou a economia do país, deixando muitos proprietários de empresas convocados para o combate a lidarem sozinhos com suas perdas econômicas. Matou soldados em excesso, não trouxe de volta a maioria dos reféns e desmoralizou, a cada dia, um número maior de civis. O que talvez seja mais desmoralizante para os cidadãos israelenses é ter de assistir ao espetáculo lamentável de ministros rebaixando-se ao insulto e à calúnia.

Esses três fronts — as ameaças militares, o extremismo político interno e a decomposição das normas — podem parecer distintos entre si, mas estão profundamente ligados e formam o núcleo de uma séria ameaça existencial para Israel.

Yahya Sinwar, o chefe do Hamas, e, portanto, um dos cérebros por trás de uma dessas ameaças, é um brilhante psicopata assassino, pois ele e os iranianos compreenderam algo que os israelenses não percebem totalmente: a força militar de Israel depende de sua resiliência interna. Israel não sobreviverá sem ser uma democracia.

Para Israel, a democracia não é um luxo moral ou político. É uma questão de segurança. A Rússia pode ser uma democracia ou uma autocracia. A Alemanha pode ser nazista ou não. Ambas sobreviverão. Não é o caso de Israel, que enfrenta o conjunto de problemas mais complexo do mundo. Isso não significa que Israel tenha os piores problemas do mundo (os problemas de Serra Leoa ou da Eritreia são bem piores), mas tem certamente os mais complexos.

Nenhum outro país tem tantos inimigos desejando fazê-lo desaparecer da face da terra; nenhum outro país contém tantos grupos contraditórios e objetivos políticos conflitantes, nem mantém sob seu controle três milhões de pessoas privadas de seus direitos humanos fundamentais por mais de 50 anos. Nenhum outro país possui um contingente tão significativo de extremistas delirantes e antidemocráticos. Por fim, nenhum outro país do mundo vê sua legitimidade enquanto Estado ser questionada ao mesmo tempo por esquerdistas bem-intencionados e por antissemitas.

Os habitantes de Gaza merecem a compaixão do mundo e o compromisso em ajudá-los a reconstruir sua sociedade, apesar do fato da maioria poder apoiar o Hamas. Mas o povo israelense também merece a compaixão do mundo, por razões que incluem, mas vão além, do 7 de outubro. Sem essa compaixão, e diante dessas ameaças múltiplas, o povo israelense só pode contar consigo mesmo.

Sem democracia e sem uma solução política para a continuação da ocupação, sob suas diversas formas, Israel será considerado um Estado pária e racista, e colocado à margem do mundo (eu não contaria com líderes populistas como Trump para salvar Israel); o país se tornará economicamente moribundo; seu capital humano se dissipará e sua capacidade militar diminuirá.

A democracia é o único regime político estável capaz de conter tantos grupos contrastantes e interesses conflitantes. É o único tipo de regime capaz de suscitar confiança nas instituições e, portanto, de atrair e produzir capital humano e econômico. Ora, a confiança é justamente o que desapareceu em Israel, pois o regime populista de Netanyahu provocou a deterioração interna das principais instituições do Estado e ainda tenta fazer o mesmo com as poucas que não foram corrompidas. Nenhuma pessoa em seu perfeito juízo confiaria o comando do Titanic ao capitão em plena tempestade.

Sinwar entende essas fraquezas e joga no longo prazo. Seus objetivos não são militares. Ou, pelo menos, não exclusivamente. Ele aposta que uma ou mais catástrofes militares desse tipo irão exacerbar as divisões em Israel e semear o caos. Ele compreende que as divisões de Israel lhe são vantajosas. Ele entende que maus líderes como Netanyahu o ajudam a minar a força de Israel.

Os habitantes de Gaza merecem a compaixão do mundo e o compromisso em ajudá-los a reconstruir sua sociedade, apesar do fato da maioria poder apoiar o Hamas.
Mas o povo israelense também merece a compaixão do mundo, por razões que incluem, mas vão além, do 7 de outubro. O Irã, o Hezbollah e o Hamas querem aniquilá-lo; seu dirigente malévolo o levou à beira do abismo; os cidadãos israelenses estão presos em um contrato social intolerável, pois unilateral, com os ultraortodoxos e messiânicos; e, por fim, devido a uma estranha aliança entre a parte da esquerda e o islamismo radical, sua existência é constantemente contestada e posta em questão.

Sem essa compaixão, e diante dessas ameaças múltiplas, o povo israelense só pode contar consigo mesmo.

Não pode haver solidariedade com grupos — internos ou externos — que trabalham para a destruição de Israel. A segurança física e a integridade moral de Israel dependem da capacidade da sociedade israelense de construir um novo contrato social consigo mesma. Um povo, como uma pessoa, precisa ter vontade. Para ter vontade, é preciso ter esperança, e a esperança só poderá renascer quando o dirigente que leva Israel à beira do abismo tiver partido.

Nunca tive tanta certeza de algo quanto disso. É necessária uma vasta frente ampla social-democrata para renovar o contrato social que liga os cidadãos ao Estado. Somente um movimento assim pode devolver aos israelenses a força que lhes foi tirada e salvá-los de um verdadeiro risco existencial.


Eva Illouz

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