Os dois pólos da identidade judaica

Um judeu que transgredisse o shabat sem ter consciência de sua existência deveria expiá-lo? Partindo desse problema de uma judeidade inconsciente de si mesma, Ivan Segré interroga a bipolaridade do ser judeu, entre a facticidade da inscrição genealógica e a radicalidade da afirmação subjetiva. Com isso, ele ilumina a articulação judaica entre emancipação individual e coletiva: não é por saber-se judeu que Moisés decide deixar a casa do Faraó, mas, ao realizar esse ato, ele já o era…

 

Pablo Picasso, ‘Autorretrato diante da morte’, 1972.

A questão da identidade judaica pode ser abordada de muitas maneiras, desde uma abordagem jurídica (halakhique) de “quem é judeu” até a multiplicidade das formas históricas, culturais, políticas e sociais da existência judaica.

Também é possível considerar a questão por um viés estritamente conceitual. O desafio, então, é interrogar a identidade judaica a partir do corpus fundador, Bíblia e Talmud. E, ao abarcar a Torá desde tal olhar, a singularidade da identidade judaica reside em sua articulação entre dois acontecimentos fundadores: a partida de Avraham “rumo à terra que Eu te mostrarei” (Bereshit) e a saída do Egito (Shemot).

Essa dupla fundação contém um ensinamento: a questão da identidade, no judaísmo, está entrelaçada à da emancipação individual e coletiva. Esta é, sem dúvida, a primeira das razões pelas quais a singularidade judaica tem um valor universal, no sentido em que os profetas evocam uma “luz para as nações”.

Posto isto, gostaríamos de interrogar um enunciado do Talmud que define a identidade judaica segundo dois pólos: um puramente genealógico, o outro puramente subjetivo.

No tratado talmúdico Shabbat, fólio 68, uma discussão opõe dois dos principais mestres do judaísmo de Eretz-Israel (dito “palestinense” segundo o léxico universitário) a dois dos principais mestres do judaísmo babilônico. Um tal dispositivo, pouco comum, assinala a importância da questão colocada. Esta diz respeito, de fato, a uma noção fundamental: a de transgredir a lei sem ter consciência disso (be-shogeg).

No dia de shabat, é proibido, por exemplo, jardinar; se Lévi, entretanto, jardina é porque esqueceu que hoje é o dia de shabat, então ele agiu be-shogeg, sem ter consciência de transgredir o interdito do dia de shabat. Nesse caso, ele deve trazer um sacrifício ao Templo para expiar, reparar ou resgatar sua inconsciência, isto é, o fato de ter esquecido que aquele dia era o dia de shabat.

A questão debatida por esses mestres do Talmud é a seguinte: o que acontece no caso de um judeu que tivesse ignorado o próprio princípio do shabat, ou seja, que jamais tivesse sabido que existe um dia chamado “shabat” durante o qual não se deve jardinar? Ele deve, nesse caso, trazer um sacrifício expiatório para reparar sua inconsciência? Ou só há de fato inconsciência — e, portanto, exigência de expiação — se em algum momento de sua existência consciente ele soube da existência de tal dia chamado “shabat” e depois esqueceu sua existência?

Ou, para traduzi-lo em termos heideggerianos: o esquecimento da questão do ser supõe que se tenha sido ao menos uma vez habitado por essa questão e depois se tenha esquecido dela, ou esse esquecimento também vale mesmo quando a questão jamais foi conscientemente colocada?

Segundo Rav e Shmuel, mestres na Babilônia, um judeu que jamais tivesse sabido da existência de um dia de shabat deve, ainda assim, depois de tomar conhecimento, trazer um sacrifício expiatório em reparação de todos os dias de shabat dos quais esteve inconsciente. Já segundo Rabbi Yohanan e Rech Laquich, mestres na terra de Israel, num caso como esse a inconsciência do shabat não é significativa, uma vez que o judeu em questão nunca teve conhecimento do shabat, de modo que não houve esquecimento.

No Talmud, uma questão só se coloca se houver um caso concreto que organize os termos. Como situar concretamente o caso em questão, isto é, a de um “judeu” que jamais soube da existência de um dia chamado “shabat”? A resposta do Talmud é a seguinte: “um bebê sequestrado entre os idólatras e um convertido que se converteu entre os idólatras”.

O caso do “bebê sequestrado entre os idólatras” é imediatamente claro e distinto: um homem judeu e uma mulher judia – digamos, Amram e Yokheved – tiveram um filho que, pouco depois do nascimento, foi sequestrado e depois criado entre idólatras. Ele continua sendo o filho de Yokheved e Amram, um judeu de pleno direito, embora ignore ser judeu (já que nada sabe de seus genitores) e embora ignore até mesmo, possivelmente, a existência dos judeus (uma vez que cresceu em um mundo idólatra). Reintegrando-se, um belo dia, à comunidade de Israel e aprendendo a existência do “shabat”, deve ele trazer um sacrifício expiatório?

Esse primeiro polo da identidade judaica ilumina rigorosamente o alcance digamos irreversivelmente genealógico do nome “Israel”: é judeu o filho gerado por pais judeus (ou, no mínimo, por uma mãe judia). Essa é uma das duas dimensões da existência judaica. Benny Lévy, em Être juif (Verdier, 2003), propôs chamar de “facticidade judaica” esse primeiro pólo do nome “Israel”.

Mas há, portanto, um outro pólo, o do “convertido que se converteu entre os idólatras”. E esse segundo termo do par teórico em questão coloca um problema temível aos comentadores medievais do Talmud: qual é, afinal, o caso desse “convertido que se converteu entre os idólatras”, de modo tal que ele se tornou “judeu” sem jamais ter aprendido nada sobre um dia chamado “shabat”?

O primeiro reflexo, diante de uma dificuldade como essa, é consultar o comentário de Rashi (século XI). Mas, a esse respeito, Rashi, provavelmente de forma deliberada, não diz nada, deixando o estudante refletir por si mesmo. Vejamos, então, o que dizem os Tossafistas.

Segundo os Tossafistas (século XII), cuja metodologia, modos de conceituação e conclusões determinaram em grande parte o pensamento rabínico posterior em matéria de estudos talmúdicos e jurisprudência, toda conversão ao judaísmo supõe a presença de três judeus, ou seja, um tribunal rabínico, além da circuncisão (no caso de um homem) e da imersão em um banho ritual. Trata-se, com efeito, de um ensinamento explícito do tratado Yevamot, fólios 46 e 47. Um ensinamento de Rabbi Yehuda precisa ainda, no fólio 47a do referido tratado, que, devendo a conversão ser realizada diante de um tribunal rabínico, uma conversão “de si para si” não tem validade. Em outras palavras, uma conversão em sua própria alma e consciência só é efetiva se for realizada na presença de (três) judeus.

O problema que se coloca aos Tossafistas, no tratado Shabbat fólio 68, é que esse “convertido que se converteu entre os idólatras” se assemelha, à primeira vista, ao caso de uma conversão “de si para si”, já que, tomado o enunciado ao pé da letra, sua conversão não se realiza na presença de judeus, mas em um ambiente composto exclusivamente por idólatras. Tratar-se-ia, portanto, de uma pessoa que, nascida de pais idólatras, tendo crescido em um mundo idólatra, se emancipa por si mesma e subjetiva, de si para si, o nome Israel, a ponto de se tornar “judeu”. Ora, segundo o tratado Yevamot 47, uma tal conversão “de si para si”, sem a presença de três judeus compondo um tribunal rabínico, não é válida. Como explicar, então, que no caso desse “convertido que se converteu entre os idólatras” sua conversão foi tomada como efetiva, a ponto de os principais mestres do judaísmo palestinense e babilônico se perguntarem, no tratado Shabbat 68, se tal “convertido” deveria ou não trazer um sacrifício expiatório (uma vez que venha a tomar conhecimento, algum tempo após sua conversão, da existência de um dia chamado “shabat”)? Sendo necessário ser um “judeu” (ou um “Israel”, no léxico do Talmud) para estar concernido pelas proibições relativas ao dia de shabat, a questão só pode ser colocada se esses mestres do Talmud reconhecem nele um “judeu”, do mesmo modo que reconhecem como “judeu” o filho de Amram e Yokheved sequestrado por idólatras.

Para resolver a aparente contradição entre o ensinamento do tratado Shabbat 68 e o do Yevamot 47, os Tossafistas explicam que, no caso desse singular convertido “entre os idólatras”, houve uma conversão em boa e devida forma, isto é, diante de um tribunal rabínico. Mas, nesse caso, como se explica que o “convertido” ignore o dia de shabat? Os Tossafistas respondem, constrangidos, que o tribunal rabínico teria omitido de lhe ensinar o dia de shabat.

Pode-se dar por satisfeita essa explicação? A nosso ver, o comentário dos Tossafistas ressalta a dificuldade mais do que a resolve. Pois se se trata de uma conversão diante de um tribunal rabínico, por que evocar um “convertido que se converteu entre os idólatras”? Além disso, qual seria o interesse, para o Talmud, em recorrer a esse segundo caso, o de um tribunal rabínico que omite ensinar o dia de shabat a um convertido e, em seguida, o abandona entre idólatras, sozinho, ignorante de tudo? Sendo que para a questão que importa ao Talmud, a de um judeu inconsciente de sua judeidade (e, portanto, inconsciente de sua relação com o shabat), o primeiro caso basta. Se é necessário associar ao caso do bebê sequestrado um outro caso, não é por preocupação de abarcar todas as configurações possíveis e imagináveis, mas com a intenção de apreender a ossatura irrefragável da identidade judaica. Ora, que sentido haveria em imaginar três judeus de passagem em um mundo idólatra, convertendo um indivíduo sem nada lhe ensinar, e logo partindo? Esse segundo caso, além de sua excentricidade, de sua inconsistência empírica, não tem em si nenhuma necessidade teórica, tampouco, portanto, necessidade existencial. Não obstante, segundo os Tossafistas, é preciso resignar-se a explicá-lo assim, caso contrário, o ensinamento do tratado Shabbat 68 contradiria o do tratado Yevamot 47. Ora, os ensinamentos do Talmud, como a geometria euclidiana, formam sistema.

Maimônides (século XII), confrontado com o mesmo problema, tenta suavizar a dificuldade. Em sua codificação do Talmud (Halakhot Shegaggot, cap. 7, halakhá 2), ele escreve que os dois casos em questão são os “de uma criança sequestrada entre idólatras e de uma criança convertida entre idólatras”. Comentando o texto de Maimônides, Rabbi Yossef Caro não deixa de assinalar a anomalia: o Talmud distingue, por um lado, entre o “bebê” sequestrado entre idólatras e, por outro, o “convertido” que se converteu entre idólatras. O segundo caso não é, portanto, a priori, o de uma “criança”, mas também, ou exclusivamente, o de um adulto. Rabbi Yossef Caro conclui daí que, segundo Maimônides, se se tratasse de um adulto, um tribunal rabínico digno desse nome necessariamente lhe teria ensinado a existência do shabat. E seria essa, portanto, a razão pela qual Maimônides corrige o texto nesse ponto: tratando-se de uma criança, pode-se compreender que nada lhe tenha sido ensinado, ou que, não estando ainda em idade da razão, o ensino seja como nulo e sem efeito, de modo que equivaleria ao caso do bebê sequestrado. Mas, tratando-se de um adulto, isso não faria qualquer sentido.

Resta que as versões do texto talmúdico são unânimes: trata-se de um “convertido” e não de uma “criança convertida”. E quanto ao primeiro caso, trata-se de um “bebê” (tinok), e não de uma “criança” (katan). O Talmud distingue, portanto, de maneira muito clara os dois casos: um é o “bebê sequestrado”, que não tem nenhuma lembrança consciente de seus genitores; o outro é “um convertido que se converteu”, o que denota a iniciativa pessoal de um adulto. Além disso, mesmo que a dificuldade seja atenuada de um lado, ela permanece aqui ainda mais acentuada: como explicar que, uma vez convertido por um tribunal rabínico, essa criança tenha sido abandonada entre os idólatras? Enfim, por que o Talmud recorreria a um segundo caso que não responde a nenhuma necessidade teórica (já que duplica o primeiro), nem existencial (já que é insensato)?

Em contrapartida, o caso do “bebê sequestrado entre os idólatras” possui uma consistência teórica e existencial rigorosa: ele expõe a dimensão puramente genealógica do nome “judeu”, o indivíduo em questão sendo designado por esse nome de maneira passiva, sem nenhuma iniciativa consciente de sua parte; ele lhe é destinado por seu nascimento, daí a “facticidade judaica” de que fala Benny Lévy. Por que, então, acrescentar o caso de um convertido cujas circunstâncias de conversão mal se sabe como determinar, seguido do abandono por um tribunal rabínico aparentemente extravagante, quando não irresponsável?

Nahmânides (século XIII) propõe outra explicação, além da apresentada pelos Tossafistas: tratar-se-ia, de fato, de uma pessoa que se converteu “de si para si” em um mundo idólatra, mas “a quem não se teria feito saber que uma conversão de si para si não é uma conversão”. Em outras palavras, segundo Nahmânides, seria possível, então, ater-se à letra do Talmud, sob a condição, contudo, de precisar que a conversão singular desse indivíduo singular teria sido, nesse caso, validada quando não deveria tê-lo sido.

 

“De um lado, há a vocação íntima e irrefutável do indivíduo que nasceu de pais judeus; de outro, há o indivíduo que, singularmente, extraordinariamente, em um mundo idólatra, reatualiza a fundação abraâmica. Eis, portanto, segundo este ensinamento do Talmud, a dualidade essencial do nome “Israel”: de um lado, Abraão; de outro, o bebê capturado pelos idólatras, a saber, Moisés.”

 

O primeiro termo do par teórico em questão é, portanto, o indivíduo que, nascido de pais judeus mas sequestrado desde o nascimento por idólatras, descobre um dia que é judeu, que é um filho de Israel. Ser judeu, nesse sentido, é ser o filho de Jokebed e Amram, aquilo que ele sempre foi em seu próprio ser, em seu real mais íntimo, mas sem sabê-lo conscientemente. Deve ele ou não, nesse caso, oferecer um sacrifício expiatório por ter ignorado o dia de shabat, ou é preciso que, em algum ponto de sua vida consciente, tenha sabido ser judeu e tenha sabido da existência do dia de shabat para estar obrigado a tal sacrifício expiatório?

O segundo pólo da identidade judaica, o alter ego da criança nascida de pais judeus, é, portanto, “um convertido que se converteu entre os idólatras”. E, segundo a letra do Talmud, bem como sua lógica, o caso é realmente o de um idólatra que se torna um “israel” por si mesmo, pelo fato de seu próprio percurso existencial. Com efeito, se ele “se converteu entre os idólatras”, isso significa que viveu em um mundo idólatra onde não havia nenhuma alteridade judaica, nenhum judeu de quem aprender a desejar ser judeu, nem sequer de quem aprender que uma tal nomeação – “judeu” ou “Israel” – existe, assim como existe o dia de shabat. E, no entanto, ele “se converteu”. Isso não significaria, portanto, necessariamente que ele “se converteu” ao judaísmo, já que ignora a existência histórica de Israel. Isso quer dizer, no mínimo, que ele se tornou absolutamente estrangeiro ao mundo idólatra no qual vive – e que, nesse sentido, tornou-se “judeu”.

O ponto de identidade lógico-existencial entre “o bebê sequestrado” e “o convertido entre os idólatras” seria, portanto, que ambos são rigorosamente inconscientes de serem “judeus”.

A diferença, entretanto, é que “o bebê sequestrado entre os idólatras” é “judeu” pelo fato de ser filho de Jokebed e Amram, ao passo que “o convertido que se converteu entre os idólatras” é “judeu” pelo fato de sua própria criação subjetiva, isto é, em virtude de um percurso existencial singular pelo qual se tornou absolutamente estrangeiro ao mundo idólatra. E tais seriam, portanto, os dois polos da identidade judaica que, indissoluvelmente ligados um ao outro, abririam à reflexão a interioridade do nome “Israel”: o bebê sequestrado, genealogicamente “judeu”, e o convertido entre os idólatras, subjetivamente “judeu”.

Passemos agora à objeção dos Tossafistas. Uma conversão ao judaísmo supõe, para ser efetiva, um tribunal rabínico, isto é, a presença de três judeus, além da circuncisão e da imersão. Ora, tal ritual, se é de fato necessário, como ensina o tratado Yevamot 47, torna impossível, ou “ilegal”, o caso do convertido que, entre os idólatras, teria se convertido “de si para si” ao arrancar-se subjetivamente do mundo no qual vive, já que, nesse caso, não há nem tribunal rabínico, nem rito de espécie alguma, e por uma razão evidente: o convertido, nessa circunstância, ignora até mesmo a existência do shabat, da circuncisão, do banho ritual e mesmo, levando a questão às últimas consequências, dos “judeus” e do nome “Israel”!

Resolver o problema colocado não exige, contudo, acreditamos nós, abandonar a coerência teórica e existencial do enunciado talmúdico. É, ao contrário, mantendo-a que as coisas se esclarecem. Com efeito, no caso do tratado Yevamot, trata-se de um convertido que se converteu entre Israel, isto é, em contato com judeus, ou ao menos informado da existência histórica de Israel, e é por isso que sua conversão, nesse caso, só é válida se realizada diante de um tribunal rabínico e após ter cumprido o rito de conversão (a circuncisão e o banho ritual). Mas se ele se converteu de si para si, sua conversão não é válida, como ensina o rabino Yehuda em Yevamot 47a, pois teria então se convertido ao judaísmo desafiando à existência histórica dos judeus.

Em contrapartida, no caso de um convertido entre os idólatras, a conversão “de si para si” é efetiva. Ele é então chamado “Israel” pelo fato de sua própria criação subjetiva, ainda que não haja tribunal rabínico, nem circuncisão, nem banho ritual, nem shabat. Com efeito, nesse caso, ele não teve conhecimento da alteridade histórica de Israel, de seus mestres, de seus ensinamentos, de suas formas de existência ritual etc., pois vive “entre os idólatras”. Por conseguinte, o que vale nesse caso é exclusivamente sua potência subjetiva singular, pela qual se arrancou, por si mesmo, da idolatria, tornando-se estrangeiro ao seu mundo.

O ensinamento do tratado Yevamot 47 articula-se, portanto, agora com o do tratado Shabat 68, sendo que os dois estão longe de se contradizer. No caso do tratado Yevamot 47, trata-se de um convertido que encontrou, de uma forma ou de outra, a alteridade histórica de Israel, o “fato judeu”, razão pela qual sua conversão “de si para si” não vale, mesmo que tivesse se circuncidado, depois se imerso em um banho ritual etc., pois sua conversão “de si para si” seria então a expressão de um desafio em relação à existência histórica de Israel.

Em comparação, no caso do tratado Shabat 68, o “convertido que se converteu entre os idólatras”, como indica a letra do texto, é um indivíduo que se libertou por si mesmo, por sua própria potência subjetiva, da idolatria, e isso sem nada saber da existência histórica de Israel. Ora, ele é, no entanto, considerado um “Israel” pelos mestres do Talmud, do mesmo modo que o bebê sequestrado, de tal sorte que, se um dia vier a conhecer a existência histórica de Israel e a do dia de shabat, e se juntar a “seus irmãos”, colocar-se-á então a questão de saber se deve ou não oferecer um sacrifício. O “convertido entre os idólatras” seria, portanto, cada homem ou mulher que, singularmente, reatualiza a fundação abraâmica: “Vai para ti, emancipa-te de teu devir de animal humano, emancipa-te dos determinismos idólatras”.

Os dois casos em questão se articulam, portanto, em sua necessidade teórica e existencial: de um lado, há a vocação íntima e irrefutável do indivíduo que nasceu de pais judeus; de outro, há o indivíduo que, singularmente, extraordinariamente, em um mundo idólatra, reatualiza a fundação abraâmica. Eis, portanto, segundo este ensinamento do Talmud, a dualidade essencial do nome “Israel”: de um lado, Abraão; de outro, o bebê capturado pelos idólatras, ou seja, Moisés.

Mas como formalizar, em termos jurisprudenciais, um tal ensinamento? É nesse ponto que tropeçaram, ao que parece, os comentadores medievais: é impossível reconhecer um indivíduo como “judeu” com base apenas no critério de seu desprendimento subjetivo em relação ao mundo idólatra. E, de fato, em seu caso, nenhuma hipotética mancha de nascimento na nádega direita poderia comprovar a coisa! Nesse sentido, o caso do “convertido que se converteu entre os idólatras” é um real que resiste a toda formalização jurídica. Resta, porém, que a objetivação jurídica da existência judaica (a codificação medieval e seus prolongamentos modernos) não pode ter a última palavra. Pois o Talmud é um pensamento e uma prática, não um código de leis. E em termos de pensamento-prática, o tratado Shabat 68 nos transmite um ensinamento bíblico-talmúdico dos mais íntimos e dos mais injuntivos: o bebê Moisés e o adulto Abraão são os dois pólos da identidade judaica.

Abraão é, portanto, o polo da subjetivação radical, da capacidade subjetiva de fundar a partir do nada, enquanto o bebê arrancado de seus pais judeus Amram e Jokebed, isto é, “Moisés o egípcio”, é o pólo da injunção, desde o mais íntimo, de retornar a Israel: bebê entregue às mãos da filha do faraó para escapar ao decreto de morte, Moisés foi nomeado por ela; depois viveu na casa do senhor do Egito, até que, tendo-se tornado homem, respondeu à convocação desde o íntimo: “Moisés cresceu, saiu para seus irmãos, viu a opressão”.

A identidade judaica reúne, portanto, dois pólos: um procede do inconsciente de um nascimento irreversivelmente destinado ao nome “judeu”; o outro procede da pura subjetivação consciente, sem a qual não há aventura humana verdadeiramente dotada de sentido. E, ao contrário do que o argumento cristão, desde Paulo de Tarso, não cessou de brandir contra Israel, a história de Moisés ilustra precisamente a conjunção essencial desses dois pólos, nascimento e subjetivação, pois é o ponto de partida abraâmico que Moisés, já homem, prolonga ao juntar-se a “seus irmãos” – o que exigia antes de tudo, em seu caso, subjetivar, de si para si, a necessidade existencial de sair da “casa do faraó”.


Ivan Segré

 

É filósofo e talmudista. Tem publicado no Brasil, pela Ed. Perspectiva, o livro Os pinguins do universal: anti-judaísmo. antissemitismo. antissionismo.

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